'Padrão OTAN' dificulta resposta ucraniana e garante avanço russo recorde em Donbass, diz analista
15:20, 7 de novembro 2024
O segundo semestre de 2024 registra um avanço russo inédito no conflito ucraniano, de acordo com a mídia dos EUA. Para analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, a autossuficiência militar russa contrasta com a dependência internacional de Kiev, que enfrentará dificuldades para reverter os rumos do campo de batalha.
SputnikO mês de outubro de 2024 registrou o maior avanço russo no conflito ucraniano desde o verão de 2022,
informou o The New York Times. De acordo com o jornal norte-americano, o segundo semestre concentra boa parte dos ganhos territoriais russos de 2024, com destaque para os avanços realizados na região de Donbass.
A ritmo acelerado das atividades no front indica que a Rússia se aproxima do seu objetivo de liberar os territórios das repúblicas de Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporozhie, que se integraram oficialmente ao país por referendo em outubro de 2022.
Após realizar incursão com resultados ambíguos na região russa de Kursk, a Ucrânia encontrou dificuldades para manter a sua linha de defesa em Donbass, possibilitando o novo avanço russo, disseram especialistas do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC), da Escola de Guerra Naval (EGN), à Sputnik Brasil.
De acordo com o próprio comandante-chefe das Forças Armadas ucranianas, Aleksandr Syrsky, o Exército russo está atualmente conduzindo uma de suas maiores ofensivas desde o início do conflito.
"As operações de combate ativas que continuam em certas direções exigem a renovação constante dos recursos das unidades ucranianas", disse o comandante ucraniano Syrsky em seu canal no Telegram. Segundo ele, a situação no front "continua difícil".
Apesar de manobras aceleradas não serem a tônica desse conflito, especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil acreditam que os sinais do avanço russo estavam dados desde o início do ano.
"Esse foi um ano de conquistas militares significativas para a Rússia, começando, por exemplo, pela tomada de Avdeevka, uma cidade-fortaleza que barrava o avanço da Rússia", disse Rafael Esteves Gomes, pesquisador de Rússia e ex-União Soviética no NAC, à Sputnik Brasil. "Depois desse fato, a Ucrânia teve dificuldades de restabelecer sua linha de defesa, o que influenciou muito o avanço russo em Donetsk."
O especialista ainda nota a tomada russa da cidade de Volchansk, na região de Carcóvia, em maio de 2024, e principalmente a tomada russa da cidade duramente contestada de Vuhledar, na região de Donetsk, em agosto de 2024.
Em resposta, as forças ucranianas realizaram uma incursão na região fronteiriça russa de Kursk em agosto de 2024.
Apesar do otimismo inicial do Ocidente com a operação, as forças ucranianas demonstram dificuldade em manter suas posições no território russo.
"Tudo indica que a Ucrânia tem gastado muitos recursos materiais e humanos para manter a sua ofensiva em Kursk, talvez de maneira um pouco irresponsável, já que essa ofensiva tem cobrado o seu preço em outros fronts", apontou Esteves.
De acordo com o especialista do NAC Pérsio Glória de Paula, Rússia e Ucrânia passaram por transformações significativas desde o início do conflito.
Enquanto Moscou adaptou a sua indústria de defesa às demandas da guerra moderna, a Ucrânia deixou para trás o pensamento estratégico soviético para adotar o chamado "padrão OTAN".
"Ao adotar no modelo ocidentalizado, a Ucrânia enfatiza a descentralização em relação às tropas, aos batalhões e às brigadas", disse De Paula à Sputnik Brasil. "Por outro lado, Kiev ficou mais dependente do apoio ocidental, tanto na área financeira quanto no fornecimento de armamentos e munições."
A Rússia, por sua vez, resolveu gargalos militares detectados no início do conflito e repensou sua política de
mobilização de tropas, que atualmente são recrutadas por contrato. Ao oferecer incentivos financeiros significativos, o Ministério da Defesa da Rússia adicionou mais de 190 mil homens às suas forças, segundo informou o vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitry Medvedev.
Por outro lado, o recrutamento de tropas é uma das principais dificuldades das forças ucranianas. Segundo Esteves, se a Ucrânia teve sucesso na mobilização no início do conflito, a situação atual é de falta crônica de pessoal e poucas alternativas para suprir as linhas de defesa.
Colapso das linhas de defesa?
Conforme a Rússia avança na região de Donbass, fica claro que as linhas de defesa ucranianas foram construídas de maneira menos robusta do que se esperava. Para De Paula, além da limitação de recursos, existem fatores estratégicos que explicam o fracasso ucraniano em construir linhas de defesa de monta na região de Donbass.
"O pensamento estratégico russo […] enfatiza a defesa em profundidade, utilizada durante a Segunda Guerra Mundial para barrar o Blitzkrieg alemão", considerou De Paula. "Os ucranianos, talvez por terem transitado do pensamento militar soviético para a linha ocidental da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], estão com dificuldades para gerir projetos de grande escala, que exigem centralização do processo decisório. E isso pode ter desconcertado a confecção dessas linhas de defesa."
O especialista também nota a influência de fatores domésticos na capacidade ucraniana de construir linhas de defesa satisfatórias. Além da possibilidade de desvio de recursos e corrupção na gestão militar ucraniana, a construção de linhas de defesa poderia carregar impacto simbólico negativo.
"A construção de linhas de defesa extensivas iria contra o discurso oficial, de que o objetivo do conflito é a retomada de território. Se você começa a construir trincheiras, fortificações de massa e dentes de dragão para impedir a passagem de tanques, significa que muito provavelmente você não vai recuperar territórios no curto prazo", explicou De Paula. "E isso afetaria a imagem da Ucrânia em relação ao Ocidente."
Fiel da balança
O especialista De Paula reconhece a assimetria estrutural entre Rússia e Ucrânia em termos de escala — tamanho geográfico, populacional e da economia —, mas nota a autossuficiência militar de Moscou como fator que garante a vantagem russa.
"A questão da autonomia é uma característica invejável da Rússia, de ser autossuficiente em praticamente tudo que é essencial para o setor militar e para a vida dos cidadãos — o que ajuda a explicar a estabilidade social russa em meio ao conflito", disse De Paula. "Essa autonomia garantiu a reestruturação da indústria de defesa russa durante o conflito, outro fator que permitiu o avanço no campo de batalha que estamos vendo agora."
Em termos de equipamento militar, uma das principais vantagens russas sobre a Ucrânia é a produção de munições de artilharia e drones, especialmente os drones de munição vagante e os drones FPV, que fornecem visão privilegiada do campo de batalha ao combatente.
De acordo com De Paula, esses tipos de drones "tem sido essenciais no conflito e talvez entrem para o hall de necessidades militares modernas".
De Paula lembra que a Ucrânia também possui equipamentos militares de alta qualidade fornecidos pelo Ocidente, que possui vigorosa indústria de defesa e, caso tenha interesse, será capaz de manter a ajuda a Kiev no médio prazo.
"A dificuldade para o apoio do Ocidente a Kiev é que somente o envio de armamento e dinheiro talvez já não seja o suficiente, uma vez que a Ucrânia enfrenta problemas de pessoal, de mobilização, recrutamento e treinamento das tropas", disse o especialista.
O
engajamento dos aliados ocidentais ao esforço de guerra ucraniano mingua frente à insatisfação da opinião pública e à eclosão de conflitos considerados prioritários pela Casa Branca, como os embates de Israel no Oriente Médio.
"Nesse sentido, a realização de uma nova ofensiva ucraniana no ano que vem fica prejudicada, tanto pelo desgaste na moral das tropas quanto pela dificuldade de alocar recursos materiais ao esforço de guerra", disse Esteves.
Inverno com Donald Trump
O avanço da Rússia no segundo semestre de 2024 também pode ser interpretado como uma preparação para o inverno do Hemisfério Norte, que obriga as partes a desacelerarem suas operações.
"A chegada do inverno no Hemisfério Norte impacta drasticamente a dinâmica das operações militares", disse De Paula. "O inverno poderá, sim, afetar o ritmo dos avanços russos, e isso não seria nenhuma surpresa. Além disso, podemos esperar uma redução intencional do ritmo russo, para construir novas redes de fortificações e garantir os ganhos que já foram feitos", concluiu o especialista.
A desaceleração do inverno coincidirá com a chegada de um novo líder na Casa Branca: Donald Trump. Durante a campanha presidencial, Trump declarou ter a intenção de
encerrar o conflito entre OTAN e Rússia, travado no território ucraniano.
De
acordo com reportagem do The Wall Street Journal, membros do gabinete de transição de Trump indicaram que a proposta incluirá o
compromisso ucraniano de não aderir à OTAN por um período de 20 anos, em troca do continuado apoio militar dos EUA.
O plano revelado pela reportagem ainda incluiria o congelamento da linha de frente e a construção de uma zona desmilitarizada de extensão de cerca de 1.200 quilômetros. O time de Trump, no entanto, ainda debate como policiar a futura zona desmilitarizada.
"Podemos oferecer treinamento e outros tipos de apoio, mas o cano da arma será europeu. Não enviaremos homens e mulheres americanos para impor a paz na Ucrânia. E não vamos pagar por isso. Peça aos poloneses, alemães, britânicos e franceses que façam isso", concluiu um membro do time de transição de Trump.
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