A importação de Vaca Muerta é um sonho antigo do Brasil, que vê o volume importado da Bolívia, tradicional parceira no segmento, cair ano após ano devido ao esgotamento natural dos campos. Em 2014, a produção boliviana atingiu seu pico de 62,6 milhões de metros cúbicos por dia (MMm3/dia). Atualmente a média é de 36 MMm3/dia.
Enquanto isso, a formação geológica argentina, que data do período Jurássico, é considerada o segundo maior campo de gás natural de xisto do mundo, com uma reserva estimada de 308 trilhões de pés cúbicos (ou 8,7 trilhões de metros cúbicos).
Os planos de compra estavam sendo discutidos entre a presidência brasileira de Luiz Inácio Lula da Silva e seu então homólogo argentino, Alberto Fernández. No entanto, as tratativas desandaram com a eleição de Javier Milei e sua antipatia ideológica pela liderança brasileira.
Dessa forma, o entendimento firmado pelos ministros de Minas e Energia brasileiro, Alexandre Silveira, e da Economia argentino, Luis Caputo, é um passo adiante no desenrolar das importações, que visam diminuir o preço final ao consumidor brasileiro e consolidar o gás natural dentro da matriz energética brasileira.
Segundo o ministro de Minas e Energia, a compra do gás argentino traz vantagens para além da redução do preço, sendo essencial para a reindustrialização brasileira.
"Estamos fortalecendo o desenvolvimento das indústrias de fertilizantes, vidro, cerâmica, petroquímicos e tantas outras que trazem desenvolvimento econômico ao Brasil. Teremos mais gás, e junto com ele mais emprego, renda e riqueza para brasileiras e brasileiros", afirmou o ministro de Minas e Energia.
Atualmente o Brasil consome entre 70 e 100 MMm3/dia, sob preço médio de US$ 13,82 (R$ 80,39) por milhão de BTUs (sigla em inglês para unidade térmica britânica, usada como referência no mercado). Já o gás de Vaca Muerta sai ao custo de US$ 2 (R$ 11,63) por milhão de BTUs, com expectativas de chegar ao Brasil por um valor entre US$ 7 e US$ 8 (R$ 40,72 e R$ 46,54).
O acordo prevê o início das importações já em janeiro de 2025, a uma taxa inicial de 2 MMm3/dia, aumentando para 10 MMm3/dia nos próximos três anos e para 30 MMm3/dia até 2030.
O Brasil produz cerca de 150 MMm3/dia, mas cerca de metade disso é reinjetado nos campos para facilitar a extração de petróleo, produto que é economicamente mais rentável.
Estão previstas também a criação de um grupo de trabalho para verificar a viabilidade das rotas logísticas existentes e a criação de novos dutos de modo a permitir a importação mais rápida e mais barata do gás argentino.
Qual será a logística de Vaca Muerta?
No plano, estão previstos o estudo de cinco rotas possíveis para a chegada do gás argentino ao Brasil.
A inversão do fluxo do gasodudo Brasil-Bolívia (Gasbol), que hoje leva gás da Bolívia para o Brasil e que é ligado a um duto que leva gás para a Argentina;
Através do Paraguai, com a construção de um novo gasoduto pela região do Chaco paraguaio;
Pelo Uruguai, ligando o gasoduto Cruz do Sul, que termina na região de Colonia, com a infraestrutura brasileira no Rio Grande do Sul;
A finalização do gasoduto Néstor Kirchner, que conectaria o megacampo até a cidade de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul;
A importação via navios do gás natural liquefeito (GNL), que demandaria sua regaseificação.
"A importação via GNL iria disparar o custo do gás", explica Luis Augusto Medeiros Rutledge, pesquisador de petróleo e gás da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e analista de geopolítica do Centro de Estudos das Relações Internacionais (Ceres), sublinhando, no entanto, que os planos de importação desse tipo são válidos para outras localidades.
Já a conexão de gasodutos argentinos ao município de Uruguaiana, quarta opção da lista acima, implicaria na construção de uma nova infraestrutura na Argentina. No momento, o gasoduto Néstor Kirchner transporta gás de Vaca Muerta à região de Buenos Aires, capital argentina. Ou seja, o trecho final de ligação ao Brasil ainda precisa ser construído.
A inversão do fluxo do Gasbol "será o grande responsável pelo gás importado", disse o pesquisador. A Argentina já finalizou obras de reversões do gasoduto Norte, que liga Vaca Muerta a cidades ao norte do país, como Salta e Jujuy, onde estão localizadas grandes minas de lítio.
Em fala à Sputnik Brasil, Rutledge destaca ainda que a Petrobras avalia a possibilidade de voltar a investir na produção boliviana, que recém encontrou novos campos de gás que ainda necessitam de estudos de viabilidade econômica.
"Investimentos desse porte se justificariam. Aumentariam consideravelmente a oferta importada de gás para o mercado interno brasileiro e o retorno financeiro ao governo boliviano. Conversas estão em andamento."
Milei voltou atrás?
Como um grande consumidor de gás natural, principalmente no inverno, quando, neste ano, teve de ser socorrido pelo Brasil em meio ao aumento no consumo, as obras de reversão do fluxo foram um marco na história da Argentina.
No anúncio de conclusão das obras, o governador de Córdoba, Martín Llaryora, afirmou que os argentinos passariam de "importadores a exportadores, não apenas em relação à Bolívia, mas também ao Brasil".
"Deixar de ser um país que consome e importa energia para ser um país que exporta energia é uma ótima notícia."
Só a paralisação das compras de gás boliviano significará uma poupança anual de US$ 1 bilhão (R$ 5,8 bilhões) para o país do Cone Sul. A exploração de gás em Vaca Muerta é feita tanto pela estatal Yacimientos Petroliferos Fiscales (YPF) quanto por empresas privadas, com mais de 2,8 mil poços perfurados.
O economista e doutorando pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Diogo Santos afirma à reportagem que ainda que a "situação econômica e social na Argentina" seja de "grave crise", a retomada do aprofundamento das relações econômicas com o Brasil, principal parceiro comercial do país, se deve à necessidade de aumentar a entrada de dólares na economia.
Segundo o especialista, a política de Milei tem como objetivo enquadrar o país às exigências e interesses dos grandes investidores financeiros internacionais e da burguesia exportadora de commodities do país. "É um programa neocolonial", decreta.
"Os dólares são importantes para formar a reserva internacional do país e, com isso, dar a segurança que os investidores financeiros exigem para aplicar seus recursos no país", explica.
"Se há dólares, eles poderão especular no país e saírem, isto é, trocarem pesos por dólares, quando bem entenderem."
Isso fica claro ao observar os resultados econômicos do ano. Enquanto a pobreza cresceu, atingindo 55% da população, e o produto interno bruto apresenta uma queda acumulada nos últimos 12 meses de 3,3%, os únicos setores que apresentam melhora foram mineração, agropecuária e intermediação financeira. "Isto é, setores pouco relacionados com a geração de emprego interna."