Os governos da Índia e do Canadá estão envoltos em uma crise diplomática que se arrasta há mais de um ano. O imbróglio começou após o assassinato de Hardeep Singh Nijjar, morto a tiros em 18 de junho de 2023, na região de Surrey, na Colúmbia Britânica, por dois homens mascarados no estacionamento de um templo no Canadá.
Nijjar era líder separatista da religião sikh. Em 2020, ele foi declarado terrorista pelo governo indiano, por liderar o movimento que demanda um Estado soberano, o Khalistão, para a população sikh na região de Punjab, no norte da Índia. Esse movimento ganhou força na década de 1940, com a independência da Índia e do Paquistão, e é classificado como terrorista pelo governo indiano.
Os sikhs representam cerca de 1,7% da população da Índia, mas são maioria em Punjab, onde a religião foi iniciada, no século XV. Cerca de 1,4 milhão de indianos vivem no Canadá, e os sikhs correspondem à metade dessa população.
Logo após a morte de Nijjar, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, sugeriu que agentes indianos estavam envolvidos na trama de assassinato. E, no mês passado, afirmou em uma coletiva de imprensa que o governo canadense tinha "evidências claras e convincentes de que agentes do governo da Índia se envolveram e continuam se envolvendo em atividades que representam uma ameaça significativa à segurança pública".
Na ocasião, Trudeau anunciou a expulsão de seis diplomatas indianos de alto escalão, acusados de envolvimento na morte de Nijjar, medida que foi rechaçada por Nova Deli, que respondeu com a expulsão de seis diplomatas canadenses também de alto escalão e acusou o Canadá de ser um refúgio para terroristas.
Desde então, a relação entre os países está desgastada e a crise respingou para a área econômica. Logo após a expulsão dos diplomatas, companhias aéreas indianas receberam uma série de ameaças de bomba, forçando desvios de voos, aterrissagens de emergência e escoltas militares, afetando milhões de passageiros e causando impacto significativo nas finanças das empresas.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam como a crise diplomática pode impactar os dois países e por que a região de Punjab é tão crítica para a Índia.
Betina Sauter, especialista em Índia, professora de pós-graduação em geopolítica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), afirma que o movimento separatista sikh é apenas uma das muitas dores de cabeça do governo do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e destaca que a Índia tem várias situações de separatismo, sendo a mais famosa a da Caxemira.
Ela afirma que a postura adotada por Trudeau é arriscada porque cria um impasse com uma das economias de crescimento mais rápido no mundo, que tem posição geográfica chave na região do Indo-Pacífico e serve como um contrapeso para a influência da China na Ásia.
"A Índia está em uma posição de crescente influência global, e o Canadá pode enfrentar consequências significativas ou arriscar suas relações com um parceiro que é tão promissor. Trudeau, no entanto, parece ter julgado que suas alegações são importantes para a soberania e segurança canadenses, o que acaba mostrando o quanto a questão do Khalistão, na verdade, é sensível para o Canadá internamente."
Sauter acrescenta que a situação se agravou porque Trudeau acusou o governo indiano de envolvimento em uma trama de assassinato, sem apresentar provas, o que levou ao rompimento das relações diplomáticas. Segundo ela, cabe ao Canadá rever sua postura "em relação aos grupos que promovem ideologias vistas pela Índia como extremistas".
"Embora o Canadá seja firme em relação ao seu compromisso com a liberdade de expressão, isso não pode ser feito em detrimento da segurança nacional da Índia, que considera certos movimentos como ameaças diretas. Assim, o Canadá deveria reavaliar a sua abordagem em relação a esses grupos", avalia.
Para a especialista, a "interdependência econômica pode ser um fator relevante para que ambos os países reconsiderem suas posturas".
"Tanto a Índia quanto o Canadá possuem interesses econômicos importantes que podem atuar como motivadores de uma reaproximação com o tempo. A Índia é um mercado emergente promissor para o Canadá, enquanto o Canadá é uma fonte importante de investimentos e de colaboração tecnológica com a Índia."
Ela afirma que, para além da perda de território, a questão separatista de Punjab se torna crítica para a Índia por conta da importância econômica da região e de sua posição geográfica estratégica.
"Punjab é uma das regiões mais produtivas da Índia, em termos agrícolas. Ela é conhecida como o grande celeiro da Índia. Então ela produz uma grande quantidade de trigo, arroz, algodão, legumes. E, além da agricultura, Punjab é um centro importante para algumas indústrias, como a indústria têxtil, de manufatura, de produção de eletrônicos. E é uma região que está bastante próxima da capital, Nova Deli, o que acaba facilitando também o comércio e os negócios. Agora, em termos estratégicos, é uma região que faz fronteira com o Paquistão, […] com quem a Índia tem uma relação bastante complexa, incluindo disputas territoriais."
Crise entre governos precede assassinato de Nijjar
O imbróglio envolvendo a morte de Nijjar não foi o estopim da crise entre Índia e Canadá, aponta Rebeca Leite, graduada em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em estudos marítimos pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (EGN) e pesquisadora do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC), da EGN, desde 2016, com foco em sul da Ásia.
"Pelo menos desde 2018 o governo indiano já tem um pouco o pé atrás em relação ao posicionamento do Canadá sobre esse movimento separatista. Porque essa certa permissividade do Canadá acaba afetando como a Índia olha para o governo canadense, porque é algo que impacta diretamente na integridade e, portanto, na segurança nacional da Índia. Em 2020, o Trudeau chegou a se manifestar por conta de um protesto que ocorreu na Índia, um protesto super violento, por sinal. E isso foi visto pelos indianos como interferência externa em assuntos domésticos, algo que para a Índia é inadmissível."
Ela afirma que essa postura do governo canadense trouxe para a Índia "um sentimento de muita insegurança" e destaca que na recente Cúpula do G20, no Rio de Janeiro, Modi não dialogou bilateralmente com Trudeau, o que já envia um claro recado de abalo nas relações, uma vez que a Índia prioriza diálogos bilaterais.
Leite aponta ainda que Trudeau está vivendo um período pré-eleitoral e busca agarrar forças porque ele deseja a reeleição em 2025. "Então se posicionar também de maneira mais assertiva faz parte de um interesse doméstico, e isso acaba se refletindo ali no âmbito da política externa do Canadá."
Entretanto, ela afirma que a resposta de Nova Deli reflete uma mudança de paradigma nas relações diplomáticas fomentada pela crescente influência da Índia, "desafiando narrativas que antes eram dominantes, como aquela de país desenvolvido e subdesenvolvido".
"O Canadá acaba tratando a Índia de uma forma um pouco mais grosseira, talvez pensando que não pudesse haver uma reação. Então, no atual cenário geopolítico, a assertividade da Índia é muito bem calculada, acaba sendo necessária na sua política externa por conta desses conflitos em que ela acabou se envolvendo", afirma.