A fala da presidente mexicana explicita um problema presente em muitos outros países da América Latina e do mundo, como o próprio Brasil. No Rio de Janeiro, cidade conhecida pelo enfrentamento de organizações criminosas, 47% dos fuzis apreendidos têm origem estadunidense, afirmou o secretário de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, Victor dos Santos.
Esse fato parece ignorado pelos governos ocupantes da Casa Branca, sejam democratas ou republicanos. Em vez de olhar para si mesmos como os causadores do problema de segurança pública do continente, por conta de seu grande mercado consumidor de drogas, como aponta Sheinbaum, ou pelo descontrole na saída de armas de fogo, os estadunidenses se veem como vítimas da violência "importada" dos vizinhos do sul através da fronteira com o México.
"Grande parte da atenção pública e política norte-americana é voltada para a entrada ilícita de drogas no país e para a imigração irregular", explica a assistente social Kharine Gil, mestra e doutoranda em sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ) e pesquisadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), à Sputnik Brasil.
"No entanto, deveria existir um enfoque maior sobre os fluxos que saem dos Estados Unidos, como armas, drogas e dinheiro ilícito."
Segundo a especialista em segurança pública, a legislação de posse e porte de armas estadunidense "favorece o comércio ilegal" desses itens, "pois muitas são obtidas legalmente e posteriormente contrabandeadas".
Dessa forma, o "descontrole" na fronteira sul estadunidense tão alardeado pelo novamente eleito Donald Trump "não deve ser posto apenas sobre o que entra, mas também sobre o que é exportado ilegalmente de lá".
Embora a saída pela fronteira com o México seja a principal rota, diz Gil, "embarques marítimos e aéreos também são utilizados. Uma das rotas conhecidas fica entre Brasil, Peru e Colômbia, passando pelo rio Solimões e outras regiões do Amazonas, até o Rio de Janeiro".
A chegada dessas armas aos países da América Latina fortalece a disputa das organizações criminosas pelo poder, "agravando a violência urbana e os conflitos armados locais, inclusive aumentando os índices de homicídios nesses territórios".
"Que azar do México", disse uma vez o ex-presidente Porfirio Díaz. "Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos."
Percepção turva não é de hoje
O problema de percepção de si mesmo é "histórico", diz Thiago Godoy Gomes de Oliveira, doutorando em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas e pesquisador colaborador no Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU).
"São nítidos os momentos nos quais os Estados Unidos buscaram fazer de outras nações palcos para conflitos desencadeados por eles mesmos. Basta lembrarmos das famosas guerras por procuração."
Nesse sentido, a mais famosa dentro do tema é a chamada "Guerra às Drogas", que, embora tenha sido lançada no governo de Richard Nixon (1969–1974), se tornou símbolo da era Ronald Reagan (1981–1989), que a instrumentalizou para avançar os interesses econômicos e estratégicos dos EUA pelo resto do continente americano, descreve Oliveira.
A partir dessa iniciativa, os Estados Unidos desenvolveram o Plano Colômbia, durante o governo de Bill Clinton. A medida viu um grande aporte de recursos financeiros e militares para o combate ao narcotráfico colombiano.
"Esse combate intensivo e militarizado não se provou eficaz até hoje, longe disso", diz o pesquisador do OPEU. "É impossível estancar esse mercado ilegal quando os maiores consumidores não reconhecem a própria ineficácia em conter a entrada de drogas e a crescente demanda dentro de seus países."
Para o especialista, se o cenário com Joe Biden "já não era promissor", com Trump a expectativa é de uma continuidade "da lógica de securitização do tema do abuso de drogas ilícitas".
"Podemos esperar com toda certeza que o Trump depositará toda a sua energia onde a maior parte do problema não se encontra: na questão da imigração no país."