Pai do programa nuclear brasileiro foi vítima da Lava Jato e merece reparação, diz analista
10:06, 20 de dezembro 2024
Considerado o pai do programa nuclear brasileiro, o vice-almirante Othon Pinheiro da Silva recebeu duas honrarias na última semana. Para especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, a recuperação da reputação de Othon, preso pela Operação Lava Jato, atende aos interesses do setor nuclear nacional.
SputnikNesta quarta-feira (18), o vice-almirante Othon Pinheiro da Silva recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). A honraria recupera o legado do cientista considerado mentor do programa nuclear brasileiro, preso sob circunstâncias polêmicas no âmbito da Operação Lava Jato.
"Depois de 601 dias de uma reclusão que nunca houve [igual], [que] oficial general nenhum teve, eu estava muito deprimido. Receber esse título é fantástico, fabuloso", disse o vice-almirante Othon durante o evento da UFBA, conforme
reportou o GGN. "Foram muitos anos de trabalho [...] e eu não tenho palavras para agradecer esse título. Isso é uma honraria, um oásis."
O reitor da UFBA, Paulo César Miguez, reconheceu a contribuição inestimável do vice-almirante para o programa nuclear brasileiro e fez votos para maior "integração entre militares e civis, em benefício dos mais legítimos interesses nacionais".
O título de doutor honoris causa veio poucos dias após Othon receber a Medalha Henrique Morize, agraciada pela Academia Brasileira de Letras no dia 12 de dezembro. O vice-almirante prepara livro de memórias no qual relatará os bastidores do programa nuclear brasileiro, sua presidência da Eletronuclear e os fatídicos processos judiciais da Operação Lava Jato, que o levaram à prisão e ameaçaram a sua reputação diante da sociedade brasileira.
A concessão de duas honrarias em uma semana aponta para a reabilitação da memória de Othon Luiz Pinheiro da Silva, em momento desafiador, no qual o vice-almirante de 85 anos enfrenta tratamento contra o câncer.
A suspeita de abusos cometidos pela Operação Lava Jato e pelo juiz Marcelo Bretas, que condenou o vice-almirante Othon, levou a rede "Lawfare Nunca Mais" a criar um grupo de apoio ao vice-almirante.
Em setembro deste ano, a
rede acionou o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) para debater o tema "o uso do sistema jurídico em nosso país para fins de perseguição à ciência: o caso do Almirante Othon". Durante o evento, o CNDH acatou a denúncia de abuso contra Othon e determinou providências,
reportou o Brasil de Fato.
De acordo com a doutora em Estudos Estratégicos Internacionais e especialista em política nuclear, Michelly Geraldo, o reconhecimento do legado do vice-almirante Othon poderá conscientizar a sociedade acerca da importância do programa nuclear brasileiro.
"Há uma tentativa de reparação do trabalho do vice-almirante Othon, que foi um dos principais responsáveis pela obtenção da tecnologia de enriquecimento de urânio pelo Brasil e pelo domínio do ciclo completo do combustível nuclear", disse Geraldo à Sputnik Brasil.
O vice-almirante também foi essencial para o projeto do submarino nuclear brasileiro, notou a pesquisadora no Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC) da Escola de Guerra Naval (MB), Vitória França.
"Sob sua supervisão, a Marinha do Brasil desenvolveu um projeto de reator nuclear compacto, tecnologia essencial para a construção de um submarino com propulsão nuclear, que faz parte do Programa de Desenvolvimento de Submarinos [PROSUB]", disse França à Sputnik Brasil.
Graduado em engenharia naval pela Politécnica de São Paulo, Othon obteve mestrado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos EUA. De volta ao Brasil,
participou do programa nuclear sigiloso conduzido pela Marinha durante o regime militar. Nesse contexto,
desenvolveu a tecnologia brasileira de enriquecimento de urânio, mais eficiente do que outros modelos internacionais.
"O modelo de ultracentrifugação com levitação magnética em cascata desenvolvido por Othon é de altíssima eficiência e colocou o Brasil no seleto grupo de países que dominam o enriquecimento de urânio", explicou o professor aposentado do Departamento de Energia Nuclear da UFMG e delegado da Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), Inácio Campos, à Sputnik Brasil. "Mas isso também colocou Othon sob a mira de serviços de inteligência estrangeiros."
O enriquecimento de urânio foi o passo fundamental para que o Brasil obtivesse a tecnologia de todo o ciclo do combustível nuclear, isto é, fosse capaz de produzir combustível para as suas usinas de forma autônoma – desde a mineração do urânio até a geração de energia em Angra dos Reis.
"O país que enriquece urânio toma a frente em assuntos como autonomia energética, que garante estabilidade econômica e atração de investimentos. O país passa a desenvolver medicina nuclear, garantindo mais saúde à população", disse Campos. "Já a
propulsão nuclear de submarinos protegeria os nossos imensos recursos marítimos, inclusive nossas reservas de petróleo."
Para o professor Campos, a sensibilidade do setor nuclear, que envolve competição tecnológica internacional, justifica operações sigilosas realizadas por Othon ao longo de sua carreira. Para Campos, o resultado do trabalho de Othon foi positivo para o Brasil, fato que não poderia ter sido ignorado pelos seus detratores da Lava Jato.
"Claro que um trabalho como o do Othon era acompanhado de perto por muitas partes interessadas. E gerou um desenvolvimento científico de ponta, que justifica o sigilo", acredita Campos. "Mas, infelizmente, aconteceu esse processo que chamamos de 'assassinato de reputação'. De vez em quando, países destroem os seus cientistas ao invés de reverenciá-los."
Para o professor,
potências estrangeiras têm pouco interesse no desenvolvimento da tecnologia nuclear brasileira. A doutora em Estudos Estratégicos Geraldo lamenta as dificuldades que o Brasil enfrenta para proteger figuras essenciais para o seu desenvolvimento.
"Acho importante que a gente faça algumas perguntas simples, por exemplo: para quem não é benéfico que o Brasil se desenvolva? Quem tem o interesse de que o Brasil permaneça com o nível de desenvolvimento que tem hoje? Por que o desenvolvimento da energia nuclear no Brasil incomoda?", questionou Geraldo.
Montanha-russa nuclear brasileira
Após os sucessos da década de 80, o programa nuclear brasileiro enfrentou períodos de instabilidade e baixa prioridade governamental. A retomada dos investimentos no programa foi observada nos primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, com a aceleração do projeto do submarino nuclear e a retomada das obras da usina de Angra 3.
"O almirante Othon é preso no escopo da Lava Jato justamente em um período no qual o programa nuclear brasileiro estava em alta. Lembro de na época ter ficado muito frustrada com a prisão, afinal tudo indicava que o projeto do submarino nuclear decolaria novamente", notou Geraldo. "Então a prisão dele foi um ponto de inflexão, que dá início a mais um período de declínio do programa nuclear, que acabou saindo das prioridades do governo."
De fato, a prisão do almirante Othon minou a credibilidade de projetos da esfera nuclear e paralisou as obras da usina de Angra 3. Apesar de avanços pontuais, o
Brasil ainda avança lentamente nesta seara.
"Atualmente, o desenvolvimento da tecnologia nuclear no Brasil está em um platô. Não é discutido com afinco nem no âmbito civil, nem no militar", lamentou Geraldo. "Vemos que o programa nuclear nem sempre é uma prioridade política, e por isso o seu desenvolvimento é uma montanha-russa, com altos e baixos."
Apesar das dificuldades, o Brasil continua formando quadros para o setor nuclear, com capacidade para dar continuidade aos trabalhos do engenheiro naval e vice-almirante Othon.
"O Brasil ainda tem uma formação acima da média em tecnologia naval e nuclear. Temos inclusive maior participação feminina na nova geração de especialistas", disse Geraldo. "A dificuldade é manter esses quadros no Brasil e evitar a fuga de cérebros."
O investimento estatal em projetos nucleares, como o desenvolvimento do submarino, o Laboratório de Geração Nucleoelétrica (LABGENE) e a usina de Angra 3, é fundamental para a fixação de profissionais qualificados no país.
"Mas para retomarmos de verdade o programa nuclear é necessário vontade política", acredita Geraldo. "Precisamos conscientizar a sociedade sobre a importância do setor para a economia civil e desfazer a associação com o desenvolvimento de armamentos."
Um primeiro passo para retomar o programa nuclear e motivar cientistas a atuar no Brasil é reabilitar a reputação do vice-almirante Othon Pinheiro da Silva.
Para a pesquisadora França, "o Brasil não deve esquecer que graças a Othon o país ostenta um dos maiores feitos tecnológicos nacionais, a partir de um trabalho excepcional que resistiu a instabilidades políticas do governo Sarney, ao desmonte do governo Collor, à falta de investimento nacional em ciência [...] e às crises e escândalos políticos".
"Mesmo vivenciando momentos complicados, dúbios e instáveis durante sua carreira, [...] Othon deixa como legado, além de toda influência técnica, um exemplo de capacidade de enfrentar adversidades, simbolizando a importância da busca pela autonomia e potência nacional", concluiu França.
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