Análise: países da OEA frustraram tentativa dos EUA de se apropriarem da agenda latino-americana
Países da OEA se uniram para barrar a ascensão de chanceler apoiado pelos EUA ao cargo de novo secretário-geral da organização. À Sputnik Brasil, analistas afirmam que o episódio mostra que Washington terá de se adaptar a uma América Latina mais independente.
SputnikO chanceler surinamês Albert Ramdin foi eleito nesta segunda-feira (10) novo secretário-geral da
Organização dos Estados Americanos (OEA). A eleição se deu com candidatura única de Ramdin, após seu concorrente ao posto, o chanceler paraguaio Rubén Ramírez Lezcano,
retirar sua candidatura diante do movimento liderado por Brasil, Chile, Colômbia, Uruguai e Bolívia para apoiar a candidatura de Ramdin.
Dos 34 países da OEA com direito a voto, Ramdin obteve o apoio da Comunidade do Caribe (Caricom) e de Brasil, Chile, Colômbia, Bolívia, Costa Rica, Equador, República Dominicana e Uruguai, o que garantiu a ele muito mais do que os 18 votos necessários para conquistar o cargo. Lezcano, por sua vez, era apoiado por El Salvador, Argentina e EUA, que são os maiores financiadores da organização.
À Sputnik Brasil, Eduardo Galvão, professor de políticas públicas do Ibmec Brasília e diretor da consultoria global Burson Brasil, afirma que a vitória de Ramdin pode ser vista como uma resistência à influência dos EUA na região, porém com nuances. Segundo ele, "a escolha de Ramdin para comandar a OEA não significa uma ruptura com os EUA, mas sim uma mensagem de que a América Latina e o Caribe querem mais autonomia nas decisões regionais".
"A retirada da candidatura do chanceler paraguaio Lezcano, apoiado por Washington, mostra que a região se organizou para frear a nomeação de um nome mais alinhado a [Donald] Trump e [Javier] Milei. Durante anos, a OEA foi percebida como um instrumento de influência dos EUA, especialmente em momentos de crise, como no golpe na Bolívia e nas sanções à Venezuela. O apoio agora de Brasil, Chile, Colômbia e outros países a Ramdin mostra uma tentativa de reequilíbrio, para dar mais espaço a vozes que não desejam uma OEA subordinada aos interesses dos EUA", explica.
Ele destaca que, por outro lado, Ramdin não ascende ao cargo com um discurso antiamericano. Pelo contrário, ele tem um histórico de diálogo com Washington e conhece os mecanismos internos da organização.
"Sua vitória representa um novo momento para a OEA: um espaço onde os países da região querem ditar suas próprias prioridades sem tanta interferência externa."
Por sua vez, Corival Alves do Carmo, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (UFS), enfatiza à reportagem que o episódio mostra uma resistência de países latino-americanos à agenda trumpista para a região.
Ele explica que "para a maioria dos países da região, a OEA é secundária em suas políticas externas", e mesmo a relação com os EUA ocorre de forma bilateral, não mediada pela organização. Segundo ele, a OEA ganha protagonismo apenas em momentos de crise, quando acaba servindo de instrumento para a atuação dos EUA.
"No entanto, se a OEA assumisse a agenda trumpista, a política externa dos países da região acabaria tendo de focar a OEA, porque as demandas aumentariam muito em torno da questão dos imigrantes nos EUA e das migrações, do fair trade, das pressões em torno das relações com a China e da presença chinesa na região, do debate sobre as big techs e a liberdade expressão, da guerra na Ucrânia, entre outros. Ou seja, haveria um risco de a agenda dos países da região ser monopolizada pelos EUA através da OEA. Com a vitória da articulação, a OEA deve manter o papel limitado que sempre teve na política externa dos países da região desde os anos 1990."
Episódio pode ser visto como uma derrota política dos EUA?
Para Galvão, o episódio, "sem dúvida, foi um revés" para a política externa dos EUA, uma vez que a tentativa de Washington de eleger um nome mais alinhado à sua visão foi barrada pela resistência organizada por uma coalizão de países da região. O analista aponta que isso expõe uma mudança no tabuleiro geopolítico, na qual "Washington já não tem a mesma facilidade para impor seus interesses como no passado".
"Ainda assim, é importante diferenciar derrota de perda de influência. A OEA segue sendo um espaço onde os EUA têm peso, inclusive financeiro. Mas esse episódio revela um desgaste na estratégia americana para a América Latina. Se antes Washington contava com o apoio quase automático de aliados na região, agora precisa lidar com um cenário em que países buscam mais independência e articulação própria", afirma.
De acordo com Galvão, os EUA terão de se adaptar a essa nova realidade, e erraram ao acreditar que a vitória de Lezcano seria automática, um erro de cálculo que mostrou que "os EUA não podem tratar a América Latina como um bloco monolítico".
Carmo afirma que enxergar o episódio como "derrota da política externa dos EUA é muito forte", uma vez que "a América Latina não é prioridade na política externa dos EUA". Entretanto, ele afirma que o caso mostra "as dificuldades que os EUA vão enfrentar dentro de todas as organizações internacionais em função da postura agressiva do governo Trump".
"Os EUA perdem a capacidade de forjar consensos em torno dos EUA no interior das instituições internacionais."
EUA podem retaliar com corte de recursos da OEA?
Atualmente, os EUA são os maiores financiadores da OEA, o que, segundo Galvão, garante poder de barganha, e um corte de recursos em retaliação ao movimento pró-Ramdin não está descartado, "especialmente se Trump decidir adotar uma postura mais agressiva".
No entanto, ele afirma que "reduzir o financiamento da OEA seria um tiro no pé para os próprios EUA", levando a uma maior articulação entre países latino-americanos.
"Primeiro porque enfraqueceria um dos poucos organismos onde Washington ainda tem influência na América Latina. Segundo porque isso poderia abrir espaço para que outros atores internacionais buscassem aumentar sua influência na região. Um vácuo financeiro na OEA poderia estimular uma maior autonomia dos países latino-americanos ou até incentivar novos arranjos regionais menos dependentes de Washington."
Nesse contexto, ele afirma que Washington pode usar o corte de verbas como ameaça, mas terá de "encontrar formas de continuar relevante sem a postura de imposição que marcou sua atuação no passado".
Galvão afirma que a história mostra que a
retórica agressiva dos EUA pode fortalecer laços entre países da região, e ressalta que o primeiro mandato de Trump (2017–2021), em meio ao discurso hostil e à imposição de barreiras comerciais a países latino-americanos,
levou muitos Estados da região a estreitar laços com a China e a União Europeia (UE).
"O discurso de Trump, baseado na lógica do 'America First', tende a tratar a América Latina mais como um problema a ser administrado do que como uma parceira real, o que gera reações defensivas na região. Com um segundo mandato, esse cenário pode se repetir, especialmente se Trump reforçar medidas protecionistas e endurecer sua retórica contra governos progressistas. Países como Brasil, México e Chile podem ver na integração regional uma saída para reduzir a dependência de um parceiro tão imprevisível quanto os EUA", observa o especialista.
Nesse contexto, ele aponta que a ironia é que, na tentativa de isolar determinados governos da região e adotar uma postura agressiva, "Trump pode acabar acelerando justamente aquilo que ele quer evitar: uma América Latina mais alinhada internamente e menos dependente de Washington". Dessa forma, a postura dos EUA seria "absolutamente" um tiro pela culatra.
"Se há um efeito colateral previsível da política externa de Trump, é a criação de incentivos para que países busquem novas formas de cooperação entre si. Se Trump voltar a tratar a América Latina com desprezo ou agressividade, a tendência é que governos latinos busquem alternativas. Isso pode incluir maior comércio intrarregional, novas alianças políticas e até reforço da presença da China na região, o que contraria diretamente os interesses americanos."
Carmo considera improvável que os EUA cortem todos os recursos da OEA. Podem, eventualmente, reduzir para gerar desgaste, mas não cortar totalmente. Ele explica que a OEA já não tem a importância que teve durante a Guerra Fria, mas ainda é o principal instrumento de ação institucional dos EUA na região.
"Se os EUA cortassem os recursos, seria o fim da OEA. Poderia ser uma oportunidade para os países da América Latina se afastarem da organização. O maior prejudicado por uma eventual desmobilização da OEA seria o Canadá, que deixaria de ter um fórum institucionalizado para dialogar com a América Latina e Caribe. Para a América Latina e Caribe, a CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] ganharia maior importância no caso de os EUA descartarem a OEA. No entanto, esse descarte é improvável."
Sobre a possibilidade de a retórica agressiva de Trump resultar em um
alinhamento entre Estados latino-americanos contra os EUA, Carmo afirma que o mais provável é que haja uma agenda negativa comum, com os países da região criticando os rompantes trumpistas, mas que dificilmente haverá uma agenda positiva comum, ou seja, uma ação conjunta em relação aos EUA,
"pois os interesses são muitos diversos entre os países, bem como o perfil de vínculo com os EUA".
"Se considerarmos Brasil, Colômbia e México, temos três países que podem convergir nas críticas, mas dificilmente convergir nas ações, porque os vínculos de cada um com os EUA são muito diversos. O México depende muito do comércio com os EUA, as questões fronteiriças e de migração são problemas para o próprio México, e também o crime organizado. A Colômbia tem forte presença militar dos EUA, vinculação comercial tradicional com os EUA, muitos setores da sociedade vinculados aos EUA. Já o Brasil, apesar dos vínculos comerciais e sociais, possui maior autonomia relativa em relação aos EUA", afirma o especialista.
Carmo, entretanto, afirma que "infelizmente" a postura de Trump não resultará em uma maior integração entre latino-americanos, como deseja o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. Ele avalia que as ações dos EUA, sob a gestão Trump, tendem a preservar a divisão na região, considerando os dois principais projetos de integração, Mercosul e Unasul. Segundo Carmo, no caso do Mercosul, a Argentina deve manter o impasse no bloco; e no caso da reativação da Unasul, a situação da Venezuela impede um consenso para a retomada da organização.
"De fato, toda a atuação do Brasil em relação às eleições venezuelanas visava criar condições para eleições que dessem legitimidade internacional ao governo da Venezuela para estabilizar as relações entre os países sul-americanos e retomar a Unasul. Ou seja, há problemas regionais independentes dos EUA e do Trump que estão dificultando a retomada da integração sul-americana."
Episódio da OEA indica possibilidade de uma nova onda rosa?
Para Galvão, o erro estratégico de Trump é enxergar a América Latina apenas sob a ótica da competição geopolítica, ignorando que os países da região têm agendas próprias e podem reagir de forma coordenada. E, na avaliação do especialista, se Trump repetir os erros do passado, pode acabar acelerando uma integração que, paradoxalmente, o governo Lula já busca fortalecer.
Ele afirma que nos últimos anos houve um ressurgimento da tendência de um novo ciclo da onda rosa, citando como exemplo a eleição de Gabriel Boric, no Chile, Gustavo Petro, na Colômbia, e Lula no Brasil. No entanto, ele afirma que um eventual novo ciclo da onda rosa dependerá de dois fatores: economia e insatisfação social. Isso porque historicamente a esquerda ganha espaço quando a população sente que os governos de direita falharam em entregar crescimento econômico e estabilidade social.
"Se Trump endurecer sua política externa e adotar medidas que prejudiquem economias latino-americanas, isso pode abrir espaço para discursos mais nacionalistas e progressistas na região. Se os governos progressistas atuais conseguirem manter estabilidade e crescer economicamente, um novo ciclo da onda rosa pode se consolidar. Mas se falharem, a frustração pode abrir caminho para novos líderes de direita — e aí o pêndulo político voltaria a oscilar. O que está claro é que a América Latina vive um momento de redefinição. E a forma como Trump e outros líderes externos agirem pode impactar decisivamente os rumos da região."
Carmo, por sua vez, avalia que o recrudescimento da onda rosa na América Latina "depende muito mais dos fatores internos do que da política sul-americana ou da política internacional em geral", e frisa que a questão venezuelana é um dos principais entraves.
"Se considerarmos apenas a América do Sul, só não se fala em onda rosa em função da Argentina, porque a quantidade de governos de esquerda na região é similar à do período da onda rosa. No entanto, […] há governos de esquerda que rejeitam o governo venezuelano. No período da onda rosa, todos os governos de esquerda reconheciam o governo Chávez, e mesmo o governo direitista do Alvaro Uribe, da Colômbia, reconhecia o governo venezuelano e aceitou participar da Unasul […]. Hoje a ausência de consenso entre os governos de esquerda dificulta pressionar os governos de direita para a agenda da integração."
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