Panorama internacional

Análise: ação dos EUA e de Israel contra o Irã deslegitima todo o regime de não proliferação nuclear

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam ser "muito preocupante" que o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) esteja perdendo credibilidade, o que pode encorajar outros países a iniciarem uma corrida armamentista nuclear — sobretudo quando EUA e Israel se comportam à margem do direito internacional.
Sputnik
No dia 2 de julho, o Irã suspendeu a cooperação com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), apontando como motivo a atuação da organização no conflito do país com Israel e com os Estados Unidos.
Por trás da decisão está uma resolução da AIEA que afirmou não ser possível confirmar se o programa nuclear iraniano tem fins exclusivamente pacíficos. O documento abriu margem para que o tema fosse levado ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), como é previsto no estatuto da agência.
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A resolução foi aprovada em 12 de junho, um dia antes do ataque israelense que iniciou a crise entre os países. Para Teerã, é evidente que a AIEA escolheu um lado no conflito e tem responsabilidade nos ataques ao território iraniano.
A preocupação com a politização da agência foi explicitada também pelo chanceler da Rússia, Sergei Lavrov, que afirmou em coletiva de imprensa durante a Cúpula do BRICS que a liderança da AIEA, com seu diretor-geral, Rafael Grossi, deve ser responsabilizada pelo documento.
"Essas avaliações foram caracterizadas por muitos como ambíguas. Ao contrário dos relatórios anteriores do secretariado, essas abrem interpretações, implicando que o Irã não está cumprindo conscientemente suas obrigações."

"Agora temos certeza de que o secretariado deve fornecer algumas garantias de que, daqui para frente, será estritamente guiado pelos poderes que lhe são conferidos e não tentará usar 'histórias falsas' que mais tarde serão usadas para politizar e promover os interesses unilaterais de alguns dos membros", afirmou o chanceler.

Em entrevista à Sputnik Brasil, Leandro Dalalíbera Fonseca, mestre em ciência política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador de temas de segurança internacional, destaca que é problemático que o Irã não queira mais colaborar com a agência, uma vez que adversários regionais "podem se ver motivados a produzir o seu próprio arsenal nuclear".

"Nós temos ali atores regionais, como a Arábia Saudita, como a Turquia, como o Egito, que podem se sentir ameaçados por esse programa nuclear iraniano e podem querer produzir seus próprios arsenais nucleares."

Posto em vigor em 1970, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) tinha como objetivo "congelar" o poderio nuclear mundial, explica Fonseca.
"Mal ou bem, ele inicia de uma forma assimétrica, porque ele é um pacto entre os que têm [armas nucleares] e os que não têm", diz o especialista. Hoje apenas nove países possuem armas nucleares.
"E os grandes países do Sul Global sempre viram esse tratado de forma assimétrica, mas eles abriram mão da sua capacidade nuclear em nome da não proliferação, em nome de um mundo mais pacífico, um mundo em que não houvesse uma hecatombe nuclear."
A crise entre o Irã e a AIEA, frisa o especialista, pode acabar colocando em xeque o TNP.

"E isso pode levar, futuramente, a uma corrida armamentista. E, quem sabe, até ao fim do regime de não proliferação nuclear."

Nos últimos anos a Rússia vem alertando repetidamente sobre as violações norte-americanas de arranjos nucleares, como o Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT, na sigla em inglês) e o posicionamento de armas nucleares na Europa, proibido pelo primeiro artigo do TNP.
O especialista destaca que, se pelo TNP as potências nucleares se comprometiam com o desarmamento gradual "para evitar uma tragédia de grandes proporções no mundo", hoje a tendência observada é a oposta.
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Fonseca considera "muito preocupante" que todo esse regime de não proliferação nuclear esteja sendo deslegitimado e perdendo credibilidade, pois não só os já mencionados países do Oriente Médio podem se sentir encorajados a desenvolver armas nucleares, como também nações como Coreia do Sul e Japão.

"Uma vez que vários países têm armas nucleares, isso gera uma insegurança global. Elas podem aumentar as rivalidades, podem aumentar as tensões, e inclusive artefatos nucleares podem cair nas mãos de grupos terroristas."

Mariana Carpes, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares (PPGCM) do Instituto Meira Mattos (IMM), da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), afirma à Sputnik Brasil que, "embora o Irã tenha suspendido sua cooperação com a AIEA, isso não significa rompimento total".
"Os inspetores da agência continuam em território iraniano, ainda que as vistorias nas instalações nucleares estejam temporariamente suspensas. O canal técnico-diplomático, portanto, segue aberto", afirma a especialista.
Carpes considera que o elemento de maior desgaste no atual cenário não é a Agência Internacional de Energia Atômica, mas sim "a credibilidade do próprio regime internacional de não proliferação", ocorrida principalmente pelas ações dos Estados Unidos.
Em 2018, durante o primeiro mandato de Donald Trump (2017–2021), Washington se retirou unilateralmente do acordo nuclear com o Irã, o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA, na sigla em inglês).
Elaborado em conjunto com Rússia, China, França, Alemanha, Reino Unido e a União Europeia, o acordo visava justamente garantir o caráter pacífico do programa iraniano, explica a professora.
"Em 2025, os EUA voltaram à mesa de negociações, mas, em meio ao diálogo, apoiaram — e participaram — de bombardeios a instalações nucleares iranianas, sem qualquer autorização do Conselho de Segurança da ONU."
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Ela afirma que esse tipo de ação não só contraria o direito internacional, mas também deslegitima os mecanismos multilaterais de segurança coletiva e enfraquece a confiança nas normas internacionais. "O sinal enviado a outros países é preocupante", diz.

"O cumprimento de tratados internacionais parece depender mais do alinhamento político com grandes potências do que da sua validade jurídica, […] o que, a médio e longo prazo, pode levar alguns países a reavaliarem sua adesão ao TNP."

Outro fator que aumenta a desconfiança dos mecanismos internacionais é o fato de Israel, nação agressora, não participar do TNP, deter cerca de 90 ogivas nucleares e tampouco integrar a Convenção sobre as Armas Químicas e Biológicas (BWC, na sigla em inglês).

"Isso torna sua retórica antinuclear frágil e reforça a percepção de duplo padrão, especialmente entre países em desenvolvimento."

Para Carpes, o momento pós-crise entre Israel e Irã não é de ruptura do regime internacional de não proliferação nuclear, no entanto enfraquece gravemente seus alicerces, principalmente quando grandes potências, como os Estados Unidos, "agem à margem do direito internacional".
"Em vez de deslegitimar a AIEA, esse cenário evidencia a importância de preservar e fortalecer as instituições multilaterais, que permanecem como uma das poucas ferramentas para evitar a proliferação e promover a segurança nuclear global", conclui a especialista.
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