Consumidores fazem fila em posto de combustíveis em meio às promoções do Dia Livre de Impostos, em Brasília (DF), em 6 de junho de 2024 - Sputnik Brasil

Dos postos de gasolina às fintechs: como facções se infiltraram no bilionário setor de combustíveis

26/09/2025
No fim de agosto, operações em oito estados desvendaram como fintechs que operam no principal centro financeiro do Brasil foram usadas pelo crime organizado para atuar de forma ilegal no mercado de combustíveis. Reportagem especial da Sputnik Brasil analisa a atuação das facções nesse setor, que já é o segundo mais lucrativo para a criminalidade.
Lucas Morais
Era um cenário bem distante daquele associado à atuação do crime organizado segundo o imaginário da opinião pública do Brasil. Em seus pouco mais de 4,6 quilômetros de extensão, os prédios modernos de alto padrão com fachadas de vidro abrigam centenas de empresas e startups que fizeram da avenida Faria Lima o principal centro financeiro de São Paulo — a região chegou a ganhar o apelido de "Vale do Silício brasileira". Esse também foi o endereço de 42 mandados de busca e apreensão da operação Carbono Oculto, uma das três iniciativas da Polícia Federal (PF), do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) e da Receita Federal que investigaram o uso de fintechs para lavar dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) em seus empreendimentos ilegais no setor de combustíveis.
O sofisticado esquema usava fundos de investimento com o objetivo de ocultar a origem ilícita dos recursos obtidos por uma das maiores facções do Brasil com postos de gasolina, distribuição de combustíveis e até padarias e lojas de conveniência. A estimativa da PF é que o esquema tenha movimentado pelo menos R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024. Só com a rede de postos, as investigações apontam a existência de pelo menos mil unidades em dez estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Paraná.

Dias após a operação, o ex-delegado Ruy Ferraz Fontes, considerado um dos pioneiros no combate ao PCC em São Paulo, foi morto com mais de 12 tiros de fuzil em uma das avenidas mais movimentadas de Praia Grande, no litoral do estado. Pelo menos sete suspeitos já foram identificados, todos integrantes da facção. Também há investigações em andamento para apurar se houve participação de agentes de segurança no crime.
Dos postos de gasolina às fintechs: como facções se infiltraram no bilionário setor de combustíveis
O assessor de relações internas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Nivio Nascimento, avalia à Sputnik Brasil que os resultados mostraram apenas "a ponta do iceberg" de um problema crônico no país. O especialista é um dos autores do estudo "Follow the products: rastreamento de produtos e enfrentamento ao crime organizado no Brasil", divulgado no início do ano pela organização, em que já apontava o setor de combustíveis como o segundo maior negócio para o crime organizado, à frente inclusive do tráfico de cocaína.
"O que nós consideramos no estudo ia muito em direção ao que foi constatado pelas operações da Polícia Federal, que mostraram justamente a inserção do PCC em praticamente todos os elos da cadeia de valor do combustível, com uma estrutura muito sofisticada de lavagem de dinheiro, usando as fintechs, mas também fundos de investimento. Isso denota, na minha opinião, a ponta do iceberg, e só agora começamos a ver o tamanho dessa infiltração das organizações criminosas nesses setores da economia brasileira", enfatiza.
Conforme a pesquisa do FBSP, a estimativa é que facções e milícias espalhadas por todo o país faturem anualmente pelo menos R$ 61,4 bilhões no setor, muito acima do rendimento com o tráfico de cocaína, que fica na casa dos R$ 15 bilhões — o valor é superior até ao lucro líquido registrado pela Petrobras no ano passado, de US$ 7,5 bilhões (R$ 40 bilhões, na cotação atual). Os dados ainda estimam que por ano são comercializados pelo menos 13 bilhões de litros de combustíveis de forma ilegal, volume suficiente para abastecer toda a frota brasileira por três semanas.

"Embora os números sejam impressionantes, considerando o tamanho do PCC e o alcance das ações dessa organização criminosa, é de se imaginar que ela não se restringe ao mercado de combustíveis […]. E, pela mesma lógica de raciocínio e pelas informações que levantamos, ficou bastante claro que essa atuação abrange outras facções. Há várias notícias da presença do CV [Comando Vermelho] e de milícias operando diversas modalidades criminais no Rio de Janeiro e em outros estados, […] com uma sofisticação nos métodos de lavagem de dinheiro e diversificação nas atividades", acrescenta.

Paisagem do Rio de Janeiro (RJ), com Cristo Redentor e Pedra da Gávea em destaque - Sputnik Brasil
Vista geral do Rio de Janeiro, um dos estados-alvo das últimas operações
Setor ameaçado pelo crime no Rio de Janeiro
Um proprietário de posto de combustível e dirigente do setor, que pediu anonimato à reportagem por temer retaliações, garantiu que a presença das facções no mercado de combustíveis é cada vez maior no Rio de Janeiro. "A situação está muito grave, e vejo cada dia mais penetrando no estado, com bandidos de facções envolvidos nisso, miliciano, bicheiro. Quem trabalha no setor está em uma situação delicada. Muita gente deixando seus negócios para entregar para esses caras", relata.
Conforme a fonte, os postos ilegais "asfixiam" os demais estabelecimentos ao abaixar os preços para um patamar difícil de concorrer. O modus operandi é complexo: desde bombas de combustível adulteradas para informar um volume maior ao consumidor ao abastecer seu veículo até a mistura de 80% de etanol na gasolina. "Em vez de colocar 20 litros de gasolina, abastece até 15% menos […], coloca metanol [tipo de álcool usado como solvente industrial, tóxico, que pode corroer peças] no combustível e ainda vende sem nota fiscal. Quem trabalha de forma correta não tem condição de competir", diz.
E o pior, pontua o dirigente, é que muitos empreendimentos ligados ao crime organizado operam sob bandeiras populares de postos no Brasil. "O consumidor acha que é um produto de qualidade e que a atuação é legalizada, mas não é. O setor não está aguentando mais, e a tendência é piorar muito", afirma, ao lembrar que o estado fluminense é cada vez mais destino desse tipo de negócio por falta de medidas "do governo".
A fonte cita ainda que a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realiza fiscalizações pontuais, tendo fechado recentemente sete postos ligados ao PCC no Rio de Janeiro, mas que é necessário também maior atuação das polícias.

"Eles [agentes da ANP] têm medo de entrar em muitos lugares, e as forças de segurança deveriam jogar mais pesado [no apoio às fiscalizações]. O mercado fica numa situação delicada e o revendedor trabalha com uma margem cada vez mais apertada. Os custos sobem — luz, aluguel, salário de funcionário — e ele não consegue repassar nada disso por conta da concorrência desleal e da bandidagem que existe. Com isso, a tendência é quebrar. Muitos já fecharam, e os que não resistem acabam caindo na mão deles", conta.

Penetração do crime organizado nas polícias estaduais
A coordenadora do Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), Carolina Grillo, explica à Sputnik Brasil que as facções criminosas do setor de combustíveis são cada vez mais interestaduais e até internacionais, o que também dificulta o combate. "Nesse sentido, as polícias estaduais têm uma possibilidade muito limitada de controle dos mercados operados por esses grupos, também pelo fato da penetração dessas organizações nas forças de segurança. Há, inclusive, uma dificuldade de controle interno das polícias, com a participação dos seus próprios agentes nas redes do crime organizado."
Como exemplo, a especialista também cita o caso do Rio de Janeiro, em que, além dos postos de gasolina, há uma forte atuação das facções no furto de combustível, principalmente em oleodutos — o estado é um dos principais produtores petrolíferos do país — que passam por áreas controladas por traficantes ou milicianos. Essa situação, inclusive, já provocou graves acidentes ambientais na região da baía de Guanabara.

"Também é importante frisar que, mesmo nos postos de gasolina regulares, que não adulteram combustíveis ou não estão ligados ao crime organizado, esses locais acabam muitas vezes sendo obrigados a pagar taxas de proteção aos grupos armados que controlam determinados territórios, especialmente na Região Metropolitana. Essa situação também ocorre em outras localidades, onde há grupos armados que impõem a cobrança aos comerciantes locais", enfatiza.

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Facções e a ameaça à economia formal
O levantamento do FBSP revelou também que as perdas fiscais do poder público brasileiro com a atuação de facções no setor de combustíveis são estimadas em até R$ 23 bilhões por ano. Para além do fortalecimento do crime organizado, esse panorama traz riscos a toda uma cadeia da economia formal, explica Nivio Nascimento.
"Pense nas pessoas que trabalham no setor de combustíveis e querem atuar dentro das regras. Elas enfrentam um contexto altamente adverso, com esquemas que envolvem milhares de caminhões e grandes volumes de combustível adulterado. Os danos são enormes, talvez até maiores do que os causados pela drogas ilícitas. Afinal, por mais que a cocaína movimente cifras bilionárias, esse mercado não se compara ao de combustíveis, bebidas ou cigarros em termos de tamanho, oferta e demanda", destaca.
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Já a pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) e professora no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Ludmila Ribeiro acrescenta à Sputnik Brasil que, para a população em geral, muitas vezes os postos de combustíveis são vistos como "um negócio acima de qualquer suspeita". Essa é uma situação contrária, por exemplo, à do mercado paralelo de peças, em que também há forte presença do crime organizado.

"Muitas vezes sabemos que ali naquela esquina tem um comércio de peças que não é registrado ou uma oficina que a gente chamaria de fundo de quintal. Mas, com o posto de gasolina, isso não ocorre. Ele demanda toda uma publicidade, estar em local visível e movimentado para que as pessoas possam abastecer o seu carro. Então, em razão dessa visibilidade, se torna excelente para a lavagem de dinheiro. E é nisso que essas novas investigações têm se destacado: primeiro, você tem um comércio que circula muito dinheiro; segundo, pode misturar etanol e outras substâncias para diluir a gasolina; e, terceiro, há uma fragilidade na fiscalização", resume.

Outro ponto citado pela especialista é a capacidade do crime organizado de utilizar ferramentas e artifícios que tornam seus "rendimentos" imunes à suspeita, inclusive com liquidez e alta rentabilidade.
"Essa surpresa de o PCC estar na Faria Lima aponta para uma nova dinâmica que foi ocorrendo à medida que os meios de pagamento foram se digitalizando […]. No tráfico de drogas, a polícia costuma prender apenas os soldados, a parte mais frágil da rede. Essa operação foi diferente porque mostrou o envolvimento de pessoas altamente especializadas e escolarizadas, que não serão pegas na rua. Isso evidencia a necessidade de mudar os padrões de policiamento e investir mais em investigações complexas", argumenta.
Caminhão-tanque escoltado pela polícia abastece posto de combustível em Brasília (DF) - Sputnik Brasil
Caminhão-tanque escoltado pela polícia abastece posto de combustível em Brasília (DF)
Avanço depende de sistemas mais eficientes de monitoramento do combustível
Diante da complexidade da atuação do crime organizado no setor, o assessor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirma que o combate à prática passa por tecnologias que garantam um maior rastreio dos combustíveis. Como exemplo, cita sistemas de marcação implementados em países como as Filipinas, que permitem informar aos consumidores a origem do produto adquirido e foram responsáveis por aumentar a arrecadação tributária em quase 90% em apenas um ano.
"Para além da atuação policial, a solução passa pela inteligência na rastreabilidade e no controle desses produtos. À medida que você pode, por exemplo, verificar se um combustível foi adulterado ou não, identificar a rota, o trajeto logístico, você tem uma possibilidade maior de desbaratar todos esses ilícitos ao redor da cadeia de valor", defende.
Já a pesquisadora do Crisp argumenta que o setor de segurança pública precisa abandonar a visão simplista de que o aumento do efetivo policial nas ruas é suficiente para enfrentar problemas estruturais, como a infiltração do crime organizado no setor de combustíveis. Para ela, o caminho passa por inteligência, equipes multidisciplinares e investigações mais sofisticadas.
"As dinâmicas ilegais não se sobrepõem, mas se articulam às legais. O crime não toma o Estado; ao contrário, precisa dele e muitas vezes atua em parceria com suas estruturas. É preciso olhar para essas frestas e superar a ideia de que mais polícia na rua resolverá tudo. O desafio exige profissionais de diferentes áreas e métodos além da simples tomada de depoimentos. Só assim será possível compreender essas novas dinâmicas e enfrentar as redes que ligam o Estado formal ao crime organizado", argumenta.
Rota do combustível ilegal no Brasil
  • Infiltração na economia formal: o crime organizado controla toda a cadeia de combustíveis, da importação à venda.
  • Importação irregular de metanol: produtos chegam pelo porto de Paranaguá, no Paraná, muitas vezes via empresas intermediárias ou de fachada.
  • Empresas interpostas: importadoras compram nafta, hidrocarbonetos e diesel no exterior, mas os pagamentos vêm de formuladoras e distribuidoras, indicando coordenação fraudulenta.
  • Sonegação fiscal em múltiplas etapas: ocorre na venda de gasolina tipo A das formuladoras para distribuidoras e com o diesel tipo A vendido diretamente pelas importadoras.
  • Ampliação da fraude: distribuidoras também sonegam impostos na venda de gasolina tipo C e diesel tipo B aos postos de combustíveis.
  • Desvio e adulteração com metanol: o metanol é desviado das importadoras e adicionado ilegalmente nos postos, prejudicando a qualidade do combustível e representando um risco a veículos e ao meio ambiente.
Caminhão-tanque parado próximo a bomba de combustível em posto de Brasília (DF) - Sputnik Brasil
Caminhão-tanque parado próximo a bomba de combustível em posto de Brasília (DF)
Último concurso da ANP foi há 10 anos
Responsável por fiscalizar toda a cadeia produtiva e de comercialização de combustíveis em todo o Brasil (só de postos de gasolina, o número ultrapassa 45,6 mil unidades), a ANP afirmou em nota à Sputnik Brasil que mantém acordos de cooperação com órgãos de todas as esferas de governo, incluindo Ministérios Públicos. Segundo a agência, também são realizadas operações conjuntas e forças-tarefa com as polícias Federal e estaduais.

Apesar da importância para o setor, o órgão admite que há anos enfrenta um grande déficit na força de trabalho permanente, já que o último concurso público foi realizado em 2015, quando foram contempladas apenas 34 vagas para os quadros técnicos. "E, desde então, a Agência recebeu novas atribuições, como a regulação e fiscalização do hidrogênio de baixo carbono e da captura e da estocagem geológica de dióxido de carbono", informa.
Sobre a denúncia de postos que misturam até 80% de etanol na gasolina para baixar preços, a ANP lembra que o volume em si não acarreta risco ambiental. No entanto, esclarece que o consumidor é lesado, já que o etanol tem poder energético inferior ao da gasolina.

"Além disso, um percentual alto de etanol acima dos teores já avaliados pode causar problemas nos motores dos veículos não dotados de tecnologia flexfuel, os quais já são projetados para funcionarem com etanol ou gasolina C em qualquer proporção de mistura", afirma.

Com relação às ações de fiscalização em território nacional, a ANP pontua ainda que as iniciativas são planejadas "a partir de diversos vetores de inteligência, como informações da Ouvidoria da ANP com manifestações dos consumidores, dados do Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis (PMQC) da Agência, informações de outros órgãos e da área de Inteligência da ANP, entre outros".
Como identificar um posto ilegal?
Entre as medidas para identificar postos irregulares, a ANP orienta os consumidores a verificar se as bombas exibem o selo de identificação da origem do combustível, inclusive nos postos bandeirados. No caso do etanol, é preciso conferir o termodensímetro, "equipamento obrigatório que deve estar fixado nas bombas de etanol e funcionando com fluxo de etanol contínuo durante o abastecimento".
A agência lembra ainda que o consumidor pode "solicitar o teste da proveta, que mede a porcentagem de etanol anidro misturado à gasolina" e que qualquer "posto deve dispor dos equipamentos necessários e de um funcionário capacitado a realizar os testes".
"Embora o preço praticado por cada posto dependa de sua estrutura de custos e negociações com os fornecedores, desconfiar de valores cobrados muito abaixo da média da região. Além disso, sempre solicitar a nota fiscal. Denúncias sobre irregularidades no mercado de combustíveis podem ser enviadas à ANP por meio do FalaBR, plataforma integrada de ouvidoria e acesso à informação da Controladoria-Geral da União (CGU)", finaliza.
A reportagem questionou o Ministério da Justiça e Segurança Pública sobre a criação, no início do ano, de uma força-tarefa nacional para investigar a atuação de facções em setores como o de combustíveis, ação que seria integrada ao Núcleo de Combate ao Crime Organizado. Porém a pasta afirmou que as informações deveriam ser solicitadas à PF, que declarou "não ter fonte disponível" para comentar o assunto.
Com relação à situação do Rio de Janeiro, a Sputnik Brasil também procurou a Secretaria Estadual de Polícia Civil (Sepol), mas não teve retorno.
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