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Análise: reparação à África não pode ser reduzida a devolução de artefatos ou compensação financeira

A história da colonização na África, marcada pela exploração brutal de recursos naturais, povos e culturas, deixou cicatrizes profundas no continente. Durante séculos, potências como França, Portugal e Inglaterra subjugaram nações africanas, saqueando territórios e impondo uma dinâmica que até hoje reverbera desigualdades estruturais.
Sputnik
Em entrevista ao Mundioka, podcast da Sputnik Brasil, o doutorando em ciência política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador Vinicius Zanchin detalhou que o impacto da colonização no desenvolvimento da África, sentida até os dias atuais, é fruto de uma movimentação complexa da Europa e de outros territórios que saquearam a região.
"As terras foram saqueadas, mas, principalmente, os recursos naturais foram extraídos para formar o desenvolvimento das potências colonizadoras. E isso continua até hoje", afirmou Zanchin.
Esse saque de bens materiais também tirou vidas humanas. Milhões de africanos foram deslocados à força para trabalhar sob condições desumanas em diversas partes do mundo, e essa força de trabalho escravizada foi um pilar da economia global. O analista lembra que, além da exploração econômica, o tráfico de pessoas foi um componente central da história colonial.
"Os corpos africanos foram saqueados, transportados para outros continentes, e isso, de forma indiscutível, moldou a configuração dos Estados africanos, que surgiram profundamente fragilizados pela colonização", explicou.
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O debate sobre reparações aos países africanos, principalmente no que diz respeito ao retorno de recursos e artefatos, e a compensações financeiras, tem ganhado destaque nos últimos anos, especialmente em um contexto de maior afirmação das nações do continente. No entanto, Zanchin é cético quanto à viabilidade de uma reparação que vá além da retórica. Para ele, é difícil falar em reparação verdadeira enquanto as estruturas de dominação econômica, o que ele chama de "neocolonialismo", continuam a afetar a África de forma direta.
O analista destaca que a reparação, muitas vezes discutida no campo simbólico, como o reconhecimento de genocídios, como o ocorrido no Congo, é um passo importante, mas ainda superficial.

"Quando falamos de reparação, estamos falando de um passado brutal. Mas o que importa realmente é como as potências europeias continuam extraindo recursos da África até hoje e como essas práticas não foram completamente desconstruídas."

O pesquisador abordou o caso do Congo, um dos países mais explorados durante o colonialismo belga. Sob o governo do rei Leopoldo II, o Congo foi privado de sua riqueza e de sua população, tendo morrido mais de 10 milhões de pessoas sob um regime de terror e exploração brutal. Para ele, o Congo exemplifica a violência extrema do imperialismo europeu e o impacto de uma colonização que não se deu apenas pela exploração econômica, mas também pela violência física e simbólica.
Zanchin explicou que o caso do Congo Belga foi particularmente cruel, pois o país não era uma colônia do Estado, inicialmente, mas propriedade pessoal de Leopoldo II.
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"Não havia separação entre o público e o privado. O Congo foi completamente saqueado para garantir os lucros de uma única pessoa e seus interesses pessoais", afirmou. Hoje, o Congo enfrenta desafios profundos em termos de desenvolvimento econômico e estabilidade política, reflexos das atrocidades cometidas e das divisões criadas pela colonização.

Neocolonialismo e mineração

O fenômeno do neocolonialismo, segundo o especialista, é uma forma mais sutil, mas igualmente prejudicial, de controle sobre os países africanos. Ele citou a continuação da exploração de recursos minerais e o domínio das elites locais, que ainda mantêm relações próximas com as potências europeias. A França, por exemplo, continua a manter uma forte influência sobre ex-colônias da África Ocidental por meio do uso do franco CFA, uma moeda controlada pelo banco central francês.

"A reparação não pode ser reduzida a uma devolução de artefatos ou a uma compensação financeira. A verdadeira reparação precisa enfrentar as estruturas econômicas que ainda subjugam a África", avaliou. O pesquisador observa que, por mais que o discurso de reparação seja forte em alguns círculos, as ações concretas de mudança estrutural são quase inexistentes.

Já o geógrafo e professor Marcelo Lemes, da universidade Estácio, falou sobre os impactos da exploração de minerais críticos no continente africano e a possível repetição de padrões históricos de exploração que datam dos tempos coloniais.
Segundo Lemes, o cenário atual apresenta duas grandes vertentes: por um lado, a possibilidade de uma maior independência dos países africanos na produção e processamento desses minerais; e, por outro, a repetição de práticas que perpetuam a dependência externa.

"O continente africano é um grande produtor desses minerais, especialmente os utilizados na transição energética, mas há o risco de que ele se torne novamente apenas fornecedor de matéria-prima", alerta o professor.

Ele explica que a falta de regulamentações ambientais rigorosas e a abundância de mão de obra barata tornam a África um destino preferencial de grandes potências e multinacionais, que se aproveitam da situação. "O receio é que os contratos de mineração, que muitas vezes não beneficiam diretamente a população local, sigam a lógica do passado, pela qual o continente exporta os recursos sem que haja um grande beneficiamento interno."
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Lemes também compartilha sua experiência em Moçambique, onde trabalhou no porto destinado à exportação de minerais.
"A mão de obra utilizada na construção do porto era quase toda estrangeira. A população moçambicana não estava sendo diretamente beneficiada com a geração de empregos", relembra, apontando que muitos desses contratos de mineração refletem os interesses de grandes potências mais do que os interesses soberanos dos países africanos.
"O impacto ambiental da mineração é grande, e a compensação pelos danos, quando existe, é mínima. Muitas vezes, as contrapartidas prometidas pelas empresas não se concretizam", destaca.
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