Uma descoberta surpreendente em Titã, a maior lua de Saturno, está desafiando um dos princípios mais básicos da química: a ideia de que substâncias polares e apolares não se misturam. Em um ambiente de frio extremo, pesquisadores identificaram que moléculas consideradas incompatíveis podem, na verdade, formar estruturas sólidas inéditas no Sistema Solar.
A pesquisa, liderada por Fernando Izquierdo-Ruiz, da Universidade de Tecnologia de Chalmers, na Suécia, sugere que esse tipo de matéria pode ser comum em Titã. O achado é especialmente relevante por ocorrer em um corpo celeste com dimensões comparáveis às de Mercúrio, o que amplia seu potencial como laboratório natural para estudar química em condições extremas.
Titã já é conhecido por seus lagos de metano e etano líquidos, além de uma atmosfera rica em compostos orgânicos. Essa combinação cria um cenário químico complexo, com paralelos intrigantes à química pré-biótica que, na Terra, antecedeu o surgimento da vida. Um dos protagonistas desse cenário é o cianeto de hidrogênio, molécula polar essencial na formação de aminoácidos e nucleobases.
A regra clássica da química — "semelhante dissolve semelhante" — prevê que moléculas polares, como o cianeto de hidrogênio, não se misturam com apolares, como o metano e o etano. No entanto, experimentos conduzidos pela NASA a -180 °C, temperatura típica da superfície de Titã, mostraram alterações inesperadas quando essas substâncias foram combinadas.
Sem conseguir explicar os resultados, os cientistas da NASA recorreram aos colegas da Chalmers. A colaboração resultou em uma série de experimentos com espectroscopia Raman, que revelaram mudanças sutis nas vibrações moleculares do cianeto de hidrogênio ao ser exposto a hidrocarbonetos apolares. As evidências apontavam para uma interação real entre as moléculas, contrariando expectativas.
Modelagens computacionais confirmaram a hipótese: metano e etano estavam se encaixando nas lacunas da estrutura cristalina do cianeto de hidrogênio, formando cocristais estáveis em temperaturas extremamente baixas. A baixa agitação térmica em Titã parece ser a chave para permitir essa combinação improvável.
Essa descoberta pode ter implicações profundas para a compreensão da geologia e da dinâmica superficial de Titã, incluindo a formação de seus mares, lagos e dunas. A existência desses cocristais pode ajudar a explicar algumas das características mais enigmáticas da paisagem da lua.
Apesar do entusiasmo, a confirmação direta dessas estruturas ainda vai demorar. A sonda Dragonfly, da NASA, que poderá investigar essas formações in loco, só deve chegar a Titã em 2034. Até lá, os cientistas seguem explorando, em laboratório, os limites da química em mundos distantes — e redescobrindo que até as regras mais fundamentais podem ter exceções cósmicas.