A história começa no início do século 20, quando Eupraxia Vladimirovna Smolianikoff e seu marido Mikhail Flegontovich, dois moradores da cidade de Tomsk, no coração da Sibéria, se mudam para Moscou e lá iniciam uma nova vida. Mikhail torna-se capitão da guarda do czar Nicolau II e Eupraxia se dedica a preparar pratos da culinária da aristocracia russa.
Vem a Revolução de 1917, e os dois fogem para a China, via Mongólia, e de lá, após outra revolução, a maoísta, iniciam uma viagem por países que incluem Japão, Singapura, Filipinas até chegarem ao Brasil, lá pelos anos 50. Vêm morar em Teresópolis, uma das principais cidades serranas do estado, e lá conhecem José Hisbello Campos, um pernambucano da distante cidade de Brejo da Madre de Deus, onde até hoje é encenada a Paixão de Cristo, um espetáculo grandioso no maior teatro aberto do mundo.
Vizinhos, a convivência se torna, aos poucos, uma sólida amizade com os anos. Para os padrões brasileiros, Mikhail é um nome difícil de pronunciar e logo ele se torna Miguel, e Eupraxia passa a ser chamada Dona Irene. O primeiro restaurante, com apenas uma mesa, é frequentado apenas por colegas de trabalho de Hisbello só aos fins de semana. A excelência da cozinha, no entanto, se transforma numa paixão dos brasileiros. O restaurante muda, ganha mais mesas e em 1964 – ano do golpe militar no Brasil, onde a simples menção da cultura russa ou da então União Soviética pode custar a vida de admiradores – se transforma no restaurante Dona Irene.
Em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil, Hisbello conta essa trajetória que, hoje, reúne milhares de clientes fiéis, fãs não só da culinária tradicional russa, como da própria alma do país. Antes de revelar os segredos dessa cozinha que remonta à época de Catarina e Pedro, o Grande, Hisbello fala de seu amor pela Rússia de todos os tempos.
"Czarismo e comunismo tiveram grandes méritos e defeitos. Da grandiosa época imperial, infelizmente, os brasileiros conhecem muito pouco, e da época bolchevista, praticamente nada. São povos muito parecidos na alegria, no amor às festas, amantes da boa comida, pessoas generosas e intensas".
Hisbello estudou russo para crescer profissionalmente na Light, concessionária de energia, de origem canadense. Ingressou no Instituto de Cultura Brasil-URSS em 1963 e saiu de lá às pressas, quando estourou o Golpe Militar de 1964, e nunca mais voltou. Antes de fugir pelas escadas, quando ia assistir uma aula, ainda pôde ouvir os gritos dos alunos e a destruição das salas pelos militares, que instituiriam uma ditadura de quase duas décadas no Brasil.
"Quebraram tudo. Nunca ficou nem um caco!", lembra.
Da convivência com o casal russo, vieram não só as aulas de russo perdidas, mas a descoberta de quanto é rica a culinária russa. A esposa Maria Emília conviveu por anos com a já brasileira Irene e lá aprendeu todos os segredos dessa gastronomia, no dia a dia do fogão. O restaurante Dona Irene é hoje uma simpática casa que recebe os clientes não apenas com boa comida. É um pedacinho da Rússia na Região Serrana do Rio. Nas várias e bem decoradas salas, o visitante se depara com porcelana russa, quadros, artesanato, samovares, matrioschkas e um sorriso sincero dos proprietários que conversam com os comensais como se já os conhecessem há tempos. Detalhe, a vodca é de fabricação artesanal, pura e delicada, e faz a alegria de todos.
O casal russo, que morreu aos 88 anos, nunca mais voltou à terra natal, mas se tornou a família do casal de brasileiros, que preserva essas tradições até hoje em cada detalhe. Se o cardápio não tem a suntuosidade da época dos czares, em nada fica a dever na quantidade e qualidade dos pratos. Em média, uma refeição não dura menos de duas horas, tamanha a quantidade de opções postas à mesa.
O Dona Irene só aceita reservas por telefone ou e-mail, não trabalha com cartões de crédito ou débito, apenas dinheiro ou cheque, mas vale a pena cada centavo. É uma verdadeira mistura de cores e sabores russos.
A maratona começa com entradas frias, compostas pelos zakushkis (aperitivos), que incluem varenkies (pasteis cozidos), salada russa, caviar de berinjela, pimentões recheados com cenoura, patê de frango, ovos recheados com atum, mousse de alho, entre outros.
Na segunda etapa, vêm os piroschkis (pequenos pastéis recheados com mais de 30 ingredientes), borsch (sopa de tomate com creme azedo). Hisbello não reclama, mas não deixa de notar que, no lugar do chá ou da vodca, muitos brasileiros pedem Coca-Cola.
"Não gosto, mas fico quieto. Afinal, o cliente tem sempre razão".
A terceira etapa da maratona inclui charutos de repolho recheados com carne (uma das muitas influências árabes, principalmente na região do Cáucasso, no sul da Rússia), blinis, outra massa assada, delicada, recheada com abobrinhas e mais invenções da experiência de Maria Emilia, baseada em receitas tradicionais.
Acabou? Não. É a hora do prato principal, que pode ser o frango a Kiev, varenike, prato típico ucraniano à base de batatas, ervas, acompanhados de escalopinhos de filé mignon grelhados com cebolinhas empanadas; o pojarsky, carne de frango preparado com queijo gorgonzola ou manteiga recoberta de croutons dourados; o caquille, suflê de peixe com molho branco, camarões, dill e outros temperos; o tradicional stroganoff.
Resisitiu? Agora vêm as sobremesas: charlote russa, supremo de nozes com chocolate, pavê de pitanga (licença à moda brasileira) ou as tradicionais panquecas flambadas no conhaque. Para finalizar, além de mais vodca, chá ou café.
Durante a Rio 2016 ou para qualquer outra época, vale conferir esse verdadeiro pedacinho da Rússia em nosso país. Mais informações pelo site www.donairene.com.br ou e-mail: restaurante@donairene.com.br.