As aves que gorjeiam em Moscou são mais distintas ainda. O livro “Eram vozes – que uniam-se co’as brisas” publicado pela editora Rudomino, com o apoio da embaixada do Brasil na Rússia, trouxe um pouco do canto do sabiá para o clima setentrional da capital russa.
O livro reúne uma seleção de poemas representativos do romantismo brasileiro: Antônio Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Luiz Fagundes Varela e Antônio Castro Alves. A obra é caraterizada pela editora como "jovem", tanto em relação à tradutora, que acaba de concluir sua graduação pela Universidade Estatal de Linguística de Moscou, como em relação à própria poesia brasileira, jovem se comparada com a europeia. Sendo assim, a autora não segue o padrão de escolha das editoras brasileiras, selecionando obras específicas. Por exemplo, no Gonçalves Dias do livro, você encontra o sabiá, mas o índio não é tão índio como em edições brasileiras.
Desde o surgimento da ideia, o livro levou dois anos para ser publicado. É uma edição bilíngue, o que permite ao leitor, que sabe português, conferir o original e "até propor uma opção diferente" da tradução.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Varvara Makhortova, a tradutora, explica os critérios de escolha das obras e autores e falou sobre o que a literatura brasileira proporciona ao leitor estrangeiro, em especial ao russo.
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Sputnik: Por que você escolheu precisamente o romantismo brasileiro? Como você escolheu os autores e as obras? Qual obra de toda a literatura brasileira tem mais significado para você?
Varvara Makhortova: Há duas razões para a escolha do romantismo brasileiro. Primeiro, o romantismo brasileiro desempenhou um papel enorme no estabelecimento da literatura nacional do Brasil. Os poetas do romantismo brasileiro se esforçaram, no século XIX, para tornar a literatura do Brasil independente. E eles conseguiram, sem dúvida. Segundo, uma parte do movimento poético brasileiro, tão importante para o país, tem sido muito raramente traduzida para o russo, tornando difícil o acesso aos leitores russos. Eu achei tal lacuna infundada e pretendi preenche-la.
O romantismo brasileiro é um fenômeno polifacético. Eu gostaria que o leitor tivesse a possibilidade de descobrir as obras dos representantes mais brilhantes das três gerações do romantismo brasileiro. A primeira delas é o indianismo, que destaca a natureza, o interesse à cultura indígena e ao passado histórico do Brasil. Gonçalves Dias é o poeta que mais se destacou nesta geração. Muitos brasileiros conhecem, desde quando crianças, versos da "Canção do Exílio", escrita em 1843, e que, alguns, fazem parte do hino nacional.
Casimiro de Abreu, o "poeta da alvorada", cujo ideal e a tranquilidade foram perdidos na infância, e Fagundes Varela, o poeta da noite, cujos versos são impregnados de misticismo, merecem menção especial como representantes da trágica "Geração Byroniana".
E, por fim, a Geração Condoreira. O condor, pássaro dos Andes, vê todo o mundo da altura do seu voo. O escritor que mais se destacou nesta geração foi Castro Alves, cujo legado tem poesia de cunho social e lírica amorosa.
Por isso eu escolhi obras destes autores brilhantes. Todas estas poesias são preciosas para mim, de uma forma ou de outra.
Falando sobre a literatura brasileira como um todo, por causa da sua riqueza e diversidade, eu hesito em escolher uma obra distinta. Eu até acho que as obras de Machado de Assis e de Jorge Amado são especialmente parecidas com as escolhidas.
S: Você teve alguma dificuldade durante o seu trabalho? Por exemplo, quando tentava preservar a rima, o ritmo e a ideia inicial do poema ao mesmo tempo?
VM: A tradução de poesia é sempre uma façanha pouco fácil e por isso é especialmente interessante.
Cada poema é um sistema complexo, todos os componentes significativos e formais dele se interligam e se entrelaçam. Ao traduzir um texto poético, é preciso ter em conta todos os elementos deste sistema, tentando recriar aquela ligação viva que reflete as principais particularidades do original.
Durante o meu trabalho, para mim era importante, de um lado, traduzir a essência nacional, que é um aspecto muito importante para o romantismo brasileiro, e do outro, fazer com que esta poesia se aproxime mais do leitor russo.
Falando em dificuldade, eu destacaria alguns momentos ligados à natureza brasileira e à cultura indígena, pois os poetas do romantismo brasileiro escolheram o sabiá como o símbolo do Brasil. Esta ave aparece em várias obras de muitos poetas, inclusive na "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias. Apesar de o sabiá ser desconhecido pelo público russo, eu achei importante conservar esta imagem [e o nome, escrito em cirílico, é explicado em nota de rodapé — Redação]. Uma mudança de ave destruiria todo o poema.
Há uma peculiaridade indígena, que é a saia de pena chamada arazoia. Durante a cerimônia nupcial, o noivo veste a noiva com tal acessório para comemorar o ato de matrimônio. Para saber isso e traduzir esta realidade corretamente, foi preciso consultar um dicionário do idioma tupi.
Em certos poemas, como "Napoleão", de Fagundes Varela, cada detalhe tem um significado: o famoso manto de Napoleão, Marengo, Austerlitz e o salgueiro da ilha de Santa Elena. Eu devia levar tudo isso em consideração durante a tradução.
Além disso, vale notar que os poetas do romantismo brasileiro gostavam de testar a sonoridade, buscando novas formas capazes de transportar os seus sentimentos da melhor maneira possível. Por isso o aspecto rítmico-melódico é essencial para esta escola. Um dos poemas de Casimiro de Abreu, "A Valsa", segue a melodia da dança. Era importante, durante a tradução, recriar uma sonoridade parecida que se aproximasse da original.
S: Qual é o potencial, segundo você, que o leitor russo tem para com a literatura brasileira traduzida ao russo?
VM: Eu acho que este potencial é enorme, porque a cultura do Brasil não pode deixar de interessar o leitor russo. Para muitas pessoas na Rússia, o Brasil é um mundo maravilhoso e pitoresco, longínquo e misterioso. E, contudo, mesmo que pareça um paradoxo, eu acho que as personalidades brasileira e russa têm muito em comum, e isso abre possibilidades para o intercâmbio cultural e enriquecimento recíproco.
O encontro com a poesia brasileira é uma brilhante possibilidade de conhecer melhor a cultura do Brasil, muito diversa e original. Pois não se diz em vão que a poesia reflete o espírito do povo.