O Sepultura, banda de metal brasileira, que desde 1984 conquista fãs por todo o mundo, chegou a Moscou em uma manhã de chuva congelante seguida por pistas de gelo em plena rua. Porém, tempo ruim parece não ter prejudicado a energia positiva da banda — seu "veterano" Andreas Kissinger afirma que "a gente se sente muito bem na Rússia", desfrutando do "povo hospitaleiro" e de "comida e bebida fantásticas".
Sputnik: É difícil dizer por que, talvez por causa do clima, as pessoas costumam pensar que os russos são frios e muito fechados, mas, por exemplo, vocês, tocando em Moscou e em outras cidades da Rússia, sentem alguma diferença na recepção?
O show em Moscou se deu no âmbito da turnê europeia dedicada ao recente lançamento do novo disco da banda, Machine Messiah, cuja principal mensagem é a obsessão da sociedade contemporânea com os gadgets e tecnologia.
S: Vocês sempre se destacaram pelo conceito muito elaborado dos discos. De onde vêm essas ideias? Porque é muito raro, na verdade, encontrar uma banda com um conceito tão elaborado da sua arte, às vezes é apenas um disco e pronto.
AK: É que nós temos um privilégio de viajar pelo mundo. Nesses três últimos anos nós fomos para todo lugar, celebramos 30 anos da banda. Fomos para os lugares como a Arménia, a Geórgia, pela primeira vez, lugares que a gente nunca tinha visitado. Então, isso sempre traz ideias novas. Você conhece gente nova, conhece bandas, músicos novos. E não só músicos, mas algum livro, um passeio, um filme, um documentário — então a gente tá sempre coletando ideias.
O famoso guitarrista frisou que o disco Machine Messiah representa um conceito de hoje, e não uma "ficção científica futurista" qualquer.
Este tema, na opinião de um dos mais ativos "cérebros" da banda, Andreas, é muito presente no mundo de hoje e pode ser discutido em qualquer parte do mundo, em qualquer sociedade. E, a despeito de todos os estereótipos que existem nas pessoas quanto à música rock e especialmente metal, isto "não é apenas o Satã e todas essas coisas", confessa Andreas. Segundo ele, o Sepultura sempre busca por algo para falar, para "criar um certo tipo de discussão".
AK: Parece que os robôs não estão realmente ajudando a gente a desenvolver o nosso intelecto, o nosso cérebro. Pelo contrário, está cada vez mais preguiçoso…
S: Sim, é só pesquisar no Google e pronto. Não precisa lembrar coisa alguma.
AK: Exatamente isso. Eu muitas vezes vi quando as pessoas estão em um restaurante ou sei lá, juntos, está todo o mundo ali, e surge uma dúvida — vai direto no Google. Em vez de trocar uma ideia ou fazer aquele exercício de lembrar as coisas na memória, que é uma parte da evolução — você tem que fazer o cérebro funcionar. Eles [a geração de hoje] já crescem com isso, com certa idade já ganham telefone, um iPad e tudo. Primeiro com os jogos e não sei o quê. Agora tem os youtubers que falam muito com as crianças, com a juventude, e falam um monte de besteira.
É interessante que o Sepultura, sendo uma banda de metal, nunca tenha se limitado a um estilo só. Os músicos usaram também muitos elementos de melodias étnicas, por exemplo, no disco de 1995 Roots a banda fez uma "explosão de influência brasileira", indo até mesmo a tribos indígenas.
S: De onde surgiu essa ideia? Foi uma tentativa de desbravar sua própria cultura ou foi para mostrá-la para todo o mundo?
AK: Acho que foi um pouco dos dois realmente, sabe. Essa necessidade de trazer uma coisa sempre nova. <…> O Sepultura começou no Brasil em 1985-86, conseguimos sair do Brasil para começar a tocar fora em 1989. E isso realmente abriu a nossa cabeça. Porque quando saímos do Brasil, a gente era muito radical. Só escutava metal, samba era lixo, a música brasileira era lixo para a gente naquela época. Aos poucos, a gente foi abrindo a cabeça e principalmente quando viajou para fora. Em 1989 foi a primeira turnê internacional. Foi aquele feito, sei lá, do astronauta que vê o planeta Terra da Lua, por exemplo. Você tem outra perspectiva das coisas.
Segundo o guitarrista, a banda queria mostrar que o Brasil não é apenas "Amazônia, praias, lindas mulheres", e, além da sua bagagem cultural única do Norte ao Sul, com várias tendências musicais, poesia, gastronomia, ela tem outro lado — por exemplo, aquilo que acontecia nas ruas de São Paulo na época. A banda tentou mostrar o país com uma "visão mais realista, não tão bonita do Brasil, mas realista", frisa o músico.
AK: E isso a gente leva até hoje. A gente ainda usa elementos da música brasileira, por exemplo, a música Phantom Self do disco novo, lá a gente usou maracatu, o ritmo tradicional de Pernambuco, e misturamos com os violinos da Tunísia.
No ano de 1993, o Sepultura lançou o grande disco Caos A.D, sendo que, em várias entrevistas, os músicos argumentaram a escolha do nome pelo "caos que vinha aumentando no mundo". Passaram mais de 20 anos, e o mundo evidenciou muitos atos de terror e violência. O guitarrista lamenta: a partir daí, piorou.
S: O que a gente tem de fazer com esta situação agravante, inclusive com atentados e terrorismo, e será que sua banda liga muito para a política ou tenta ficar afastada de tais coisas?
AK: Então, a politica é uma m***a. Mas é a parte da nossa vida. Eu acho que você tem que ficar atento àquilo que tá acontecendo. Porque senão, acontece o que você vê no Brasil, as pessoas deixaram muito tempo sem ligar para política e agora tá um caos de corrupção, políticos famosos na cadeia, políticos importantes na prisão, outros importantes ainda não, mas já na mira da justiça, impeachment da presidente. Então, realmente está em um momento muito, muito difícil, muito incerto. No ano que vem, nós vamos ter eleições para presidente de novo e vai ser um momento muito importante. Eu acho que o caos realmente está pior, as pessoas estão cada vez menos tolerantes.
Na opinião do roqueiro, "o respeito é fundamental". Andreas observa que tais países como os EUA, bem como o próprio Brasil, são um exemplo dos Estados que foram criados por refugiados, principalmente. Por isso que a falta de tolerância em relação aos migrantes hoje em dia é "alarmante", afirma o músico.
AK: Desde 1900, do começo do século passado, muitos japoneses, europeus foram para lá, no período entre as guerras, o pós-guerra, a primeira guerra, a pós-segunda guerra. A minha avó veio da Eslovênia, foi para o Brasil depois da Segunda Guerra. A família do meu pai, alemães, [eles] vieram na década de 20 para plantar café no Brasil, começar uma vida completamente nova. Então isso é muito positivo no final, porque se vê como é a cultura brasileira. Não existe purismo. O purismo é uma ideia muito idiótica, irreal, porque todos nós somos uma mistura.
Com efeito, o grau de tensão na sociedade está cada vez maior. Isto se vê em várias esferas da vida — por exemplo, ao longo dos últimos anos, houve vários casos em que vários artistas, inclusive bandas de rock, recusaram dar shows na Rússia por motivos políticos. A Sputnik Brasil perguntou ao guitarrista da icônica Sepultura se é correto misturar música com política.
AK: É uma questão difícil, realmente. Eu sei que Roger Waters [músico, cantor e compositor inglês, um dos fundadores da banda Pink Floyd] faz campanha contra Israel, ele não toca lá, inclusive ele até manda cartas e mensagens para as bandas que marcaram um show tipo "ah, não vai", não sei o quê… Teve a época da África do Sul, da apartheid, quando muita gente não foi lá. Me lembro que a turnê do Black Sabbath que tocou lá provocou muitas críticas e tudo. <…> Mas não sei, é esquisito, não é uma coisa que tem funcionado nos últimos tempos. A política internacional de Israel não mudou por causa de Roger Waters e não vai mudar, infelizmente. Então, acho que… A gente sempre respeitou o nosso fã, respeitou o povo de cada lugar, e a gente nunca teve esse tipo de atitude.
Vale ressaltar que, ao longo dos 33 anos da carreira, o Sepultura visitou todo o leque de países — inclusive Cuba, Estados muçulmanos como a Indonésia e o Marrocos, e até as nações consideradas como "totalitárias".
Nem todo o metalista, mesmo sendo um barbudo tatuado com cabelo comprido, é ignorante e desenfreado. Isto é apenas um preconceito que às vezes surge na sociedade — e o Sepultura prova isso com suas letras, ideias e atitudes.
S: No passado, o Sepultura também participou de algumas ações tipo Barulho contra Fome, que é muito importante para seu país. Vocês continuam participando em ações desse tipo, talvez façam algum trabalho filantrópico?
AK: Sim, a gente sempre que possível faz alguns shows beneficentes onde a renda é doada para certas instituições. Fizemos também a campanha do festival Rock in Rio para replantar as árvores no Amazonas que é uma coisa importante para o mundo inteiro. <…> Fizemos também outra campanha para outro tipo de árvore que deu nome ao Brasil, que é pau-brasil e também está em extinção. É uma madeira muito importante para o arco dos instrumentos como violino, violoncelo. E o pessoal da Europa tá muito preocupado, porque é cada vez mais rara. Então, a gente participou também de uma campanha e deu shows em prol desse replantio. Também plantamos e… A gente tem que chamar atenção dos nossos fãs para esses problemas. Se cada um fizer um pouquinho… <…> No Brasil, o país ainda tá muito subdesenvolvido nesse aspecto, muito ignorante, há falta de educação. Não jogar lixo na rua, respeitar leis de trânsito, não roubar sinal da televisão do vizinho… Sabe, essas coisas acontecem no Brasil demais. Coisas pequenas, reciclar… Se cada um mudar um pouquinho na sua própria casa, no seu bairro, é ali que vai ser a mudança, não vai ser votar em um determinado político.
Como conclusão, Andreas Kisser respondeu a uma pergunta dos seus colegas russos, a banda de metal NEVER-OPENED DOORS.
S: A pergunta é a seguinte: qual é a principal mensagem transmitida na sua música?
AK: Eu acho que assim, é o respeito. E o respeito acaba com as fobias, em formação… Procurar possibilidades novas e não só ver o que se aprendeu na escola, o que você vê na BBC de Londres ou na CNN, ou você lendo um jornal. Hoje a Internet abriu espaço para outras possibilidades por mais loucas que elas sejam. Então acho que o Sepultura sempre fala disso nas letras, a gente sempre expressa aquilo em que a gente acredita sem atacar ninguém.