De acordo com a missionária, o ataque contra os indígenas já vinha sendo preparado há dias “repetidas reuniões entre fazendeiros, políticos e alguns adeptos da Assembleia de Deus da região”. Ela disse ainda que esses grupos consideram os índios “ladrões, bandidos e invasores de propriedades”.
“Não houve conflito. Houve uma tentativa de massacre. Houve um ataque contra o povo indígena Gamela e foi um ataque [...] premeditado e planejado para atacar os indígenas que sempre existiram naquele território, mas tiveram o seu território vendido, invadido e já não tinham nem condições de exercer as atividades essenciais à sua sobrevivência”.
Por conta do ataque, pelo menos 13 pessoas ficaram feridas, segundo dados do Cimi. Já a Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão confirmou que apenas sete deram entrada no sistema. Os dois órgãos confirmam que três índios seguem internados. Destes, o Cimi diz que dois tiveram as mãos amputadas – o que a secretaria e o governo estadual negam.
“Duas vítimas tiveram sim as mãos amputadas. Foi o termo usado pelo médico hoje [terça-feira] quando estivemos no hospital. Nos braços de um deles... foram cortadas as duas mãos, de cima para baixo, em cima das articulações. Elas ficaram presas por um pedacinho da pele mesmo, mas foram cortadas. Eles perderam os ligamentos e os movimentos. Agora, essas mãos foram reconstituídas, os indígenas estão com as mãos todas enfaixadas, e a gente não sabe ainda se eles recuperarão os movimentos”, afirmou Meire Diniz.
A missionária garantiu ainda que os ataques com facões que deceparam as mãos dos dois indígenas ocorreram após eles já terem sido baleados. Ela complementou afirmando que a prática de corte usada contra os índios seria conhecida na região para abater animais.
“O Cimi e todas as entidades sustentam que as mãos foram amputadas. A violência do corte é como fazem como prática nessa baixada do território Gamela, onde está o município de Viana. As pessoas fazem isso para abater boi, abater búfalos que entram nos territórios: cortam as articulações. Os indígenas já tinham sido feridos a bala e tiveram as mãos amputadas quando estavam no chão, em um ato de brutalidade muito grande”.
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), negou em várias postagens em suas redes sociais que qualquer indígena com mãos decepadas tenha sido atendido pela rede estadual de saúde. Ele ainda publicou documentos trocados com a Funai a respeito do território em disputa pelo povo Gamela e os fazendeiros, e disse que investigações estão em andamento.
Responsabilidades
Os índios Gamela reivindicam demarcação de terra de área de 14 mil hectares localizados na região Norte do Estado. A área foi doada pela Coroa Portuguesa no século 18. Até agora, os índios Gamela conseguiram retomar apenas 500 hectares de terra da área invadida por fazendeiros, de acordo com a regional maranhense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MA).
A falta de avanço em prol de uma solução fundiária na região fez com que os índios tomassem uma atitude de demarcarem eles mesmos a área reivindicada, de acordo com o Cimi. Essa atitude teria motivado então a ação de dezenas de pistoleiros, armados com pedaços de madeira, facões e armas de fogo.
A responsabilidade pela demarcação de terras indígenas no Brasil é do governo federal. Cabe ao Executivo determinar a delimitação de territórios que cabem aos índios, porém os procedimentos costumam levar anos e muitas vezes acabam nos tribunais, impedindo uma resolução. Como pano de fundo, a violência costuma ser registrada nessas disputas que colocam indígenas e fazendeiros em lados opostos.
Em Viana, Meire Diniz diz que a Funai iniciou o processo de demarcação, mas ele não foi adiante. Os índios Gamela, por sua vez, já buscaram apoio das autoridades, mas obtiveram pouco sucesso. Até mesmo ameaças foram relatadas às autoridades da coordenação regional da Funai, em Imperatriz (MA). A falta de respostas contribuiu para o ataque.
“Eles [índios] partiram para ações de retomada, fazendo eles mesmos a demarcação do território. E o governo do estado não tem de fato a responsabilidade de fazer a demarcação do território, é atribuição do Executivo e da Funai, mas ele pode pressionar o governo federal para acelerar esse reconhecimento do território”, afirmou a missionária.
Em nota, o Ministério da Justiça informou estar “averiguando o conflito agrário no povoado de Bahias, no Maranhão”.
“Por determinação do ministro Osmar Serraglio, a Polícia Federal já enviou uma equipe para o local para evitar mais conflitos e ofereceu apoio à Secretaria de Segurança Pública que, por sua vez, já instaurou inquérito para investigar o caso”, conclui a nota.
O próprio Serraglio é visto com ressalvas pela comunidade indígena. Levantamento do jornal Folha de S. Paulo mostrou nesta terça-feira que o deputado federal, há 55 dias como ministro da pasta, já teve mais de 100 audiências com membros da bancada ruralista do Congresso – da qual é diretor jurídico –, e nenhuma com qualquer representante indígena do país.
Serraglio criticou recentemente a pressão por demarcações aos dizer que “terra não enche barriga”. Ele também atuou como relator da PEC 215/2010, a qual quer passar para o Legislativo federal a responsabilidade de definir demarcações de terra no país. Em seu relatório, Serraglio deu parecer favorável à proposta.
Soluções
A OAB-MA já adiantou nesta terça-feira que pedirá ajuda da Anistia Internacional para pressionar o governo brasileiro a assumir a sua responsabilidade no andamento das demarcações de terra indígenas. O problema testemunhado no Maranhão vai muito além, segundo dados do IBGE.
De acordo com o Censo 2010, o Maranhão tinha 38.831 índios de diversas etnias, sendo que 76,3% estavam em terras indígenas. Entretanto, 9.210 estavam fora desses territórios, vivendo em cidades ou áreas não demarcadas. Fazendeiros da região não reconhecem o direitos dos indígenas.
Em 2015, um relatório do Cimi sobre a violência contra povos indígenas no Brasil já mostrava que o direito territorial do povo Gamela não havia sido reconhecido em Viana. Naquele mesmo ano, uma ação de retomada de duas fazendas semelhante a do último domingo também gerou um ataque com armas de fogo contra os índios.
Diante da repercussão do caso, a Polícia Federal e a Secretaria de Segurança do Maranhão estiveram presentes na área. Contudo, relatos dizem que a tensão na área permanece, mesmo com a presença de policiais.
Órgãos de segurança vistoriam povoado Baías e trabalham para garantir a lei e a ordem em Viana pic.twitter.com/43FCkpczWd
— Segurança Maranhão (@SegurancaMA) 2 de maio de 2017
Para Meire Diniz, uma solução definitiva passa impreterivelmente pela demarcação da área em favor do povo Gamela.
“Assim o povo Gamela poderia encontrar a sua paz e poderia exercer o seu direito de estar no seu território, cuidando da sua cultura, e o povo da região também ficaria mais tranquilo porque colocaria um fim nessa situação de tensão ali, sem se saber quais são os limites de cada um no território. Agora, vale dizer que o território é do povo Gamela, sempre foi do povo Gamela, é uma área de ocupação tradicional e que todo mundo sabe que foi uma área que foi grilada principalmente nos anos 1970 e muitos fazendeiros se apropriaram sabendo que eram terra indígena”.
Em entrevista coletiva nesta terça-feira, o presidente da Funai Antônio Costa disse que o órgão tem dificuldades de pessoal e orçamentárias para dar andamento às demarcações no país. Segundo ele, o processo do povo Gamela de Viana é de 2016 e a falta de agilidade reflete a difícil situação da própria Funai em lidar com tantos pedidos.