Treinadores dos ingleses Liverpool e Arsenal, Jürgen Klopp e Arsène Wenger, respectivamente, criticaram o valor como algo “além da racionalidade”. A Federação Internacional dos Jogadores Profissionais (FIFPro) afirmou que uma transferência deste porte é só “a ponta do iceberg” e que ela “destrói o equilíbrio competitivo”.
Mas não se engane: Neymar saiu barato. Pelo menos diante das intenções reais do presidente do PSG, Nasser al-Khelaifi, e do seu país, o Qatar. E não se trata de futebol. É geopolítica.
Ainda que não intencionalmente, o técnico do Manchester United, José Mourinho, defendeu a transação de Neymar, afirmando que o brasileiro é um dos melhores do mundo. O único problema é que o mercado ficará ainda mais inflacionado daqui para frente. Isso no campo futebolístico.
Fora das quatro linhas, o que está por trás da compra de Neymar é o chamado ‘soft power’ (poder suave ou poder brando, em tradução livre), termo cunhado pelo cientista político norte-americano Joseph Nye, da renomada Universidade de Harvard (EUA). Segundo ele, “poder é a habilidade de influenciar o comportamento dos outros para conseguir o resultado que se quer”.
De Saddam a Neymar
Segundo o jornalista canadense e doutor em Sociologia pela Universidade de Oxford, Declan Hill, o valor pago pelo grupo do Qatar que é dono do PSG “é aproximadamente o valor de um novo avião” para os magnatas do Oriente Médio. Em artigo publicado nesta sexta-feira, ele relembra como a invasão do Kuwait pelo Iraque, em 1990, influenciou a família real qatariana.
“O que foi chocante para a família real do Qatar — que são aproximadamente equivalentes à família real do Kuwait, esses lugares não são realmente países, mas grandes terrenos com um clã — é que, em primeiro lugar, o mundo considerava a invasão do Iraque com grande indiferença […]. Levou o esforço imenso da elite do Kuwait e enormes quantidades de dinheiro para comprar influência suficiente com o povo americano e seus políticos para lançar outra invasão de seu país em janeiro de 1991”, escreveu, referindo-se à Guerra do Golfo, no governo de George H. Bush.
Hill explicou que o Qatar aprendeu duas lições com o episódio:
“Primeiro, nenhuma quantidade de material militar ou mercenários bem pagos seriam suficiente para proteger o seu país pequeno, plano e indefensável de um poderoso exército vizinho, como os iraquianos, os iranianos ou, mais especificamente, os sauditas. Dois, eles precisavam comprar ‘soft power’ ou aquela influência intangível em outras nações que coisas como educação, mídia e investimentos financeiros podem oferecer”, ponderou.
Segundo o jornalista, foi assim que o Qatar decidiu investir em empreendimentos como o canal de TV Al-Jazeera e no esporte, culminando com o direito de sediar a Copa do Mundo de 2022 e adquirindo clubes de futebol, como é o caso do PSG, nova casa de Neymar.
“É a imagem, estúpido!”
Embora as tentativas esportivas do Qatar possam ser consideradas um “fiasco”, sobretudo pelas denúncias de desrespeito aos direitos humanos e às muitas mortes de trabalhadores estrangeiros que trabalham nas obras para o Mundial de 2022, a presença vitoriosa em clubes como o PSG pode ser valorosa a curto, médio e longo prazo para a imagem do país.
De acordo com Hill, o principal clube de Paris pode ser tido como o equivalente francês do Real Madrid, obtendo assim o apoio das figuras mais poderosas da França. Em baixa, o PSG só renasceu em 2011, quando um grupo do Qatar, liderado por Nasser al-Khelaifi (este um ex-tenista e representante próximo do emir do país, Sheikh Tamim bin Hamad Al-Thani), comprou 70% das ações da equipe.
“Vocês já estão colocando uma pressão extra. ‘Obrigado’”, brincou al-Khelaifi nesta sexta-feira, durante a coletiva de apresentação de Neymar, quando perguntado se a chegada do brasileiro significa que o PSG prioriza vencer o mais rápido possível a Liga dos Campeões da Europa, principal torneio de clubes do planeta. Certamente tal título seria importante.
Contudo, a história mostra que feitos no esporte ajudam governos. O canadense cita a vitória da seleção inglesa na Copa de 1966, disputada em casa, e como ela foi importante para a vitória do trabalhista Harold Wilson e do seu partido, que ficou com a maioria na Câmara dos Comuns.
No Brasil, o tricampeonato da seleção brasileira, em 1970, foi propagandeado como um feito ligado à ditadura militar, com direito a uam recepção do general Emílio Garrastazu Médici em Brasília. Ou seja, há mais por trás do interesse por títulos esportivos, e esse entendimento não fugiu ao entendimento dos qatarianos na hora de avalizar a compra de Neymar.
“A situação com o PSG é a mesma. Seus muitos fãs — tanto dentro como fora dos círculos de poder franceses — adoram que os qatarianos estejam comprando sucesso. Se o PSG com Neymar ganhasse a Liga dos Campeões, a família governante do Qatar passaria da obscuridade relativa para as pessoas ricas mais populares da França. Isso é poder suave”, emendou.
A contrapartida de tais investimentos viria no futuro caso, por exemplo, o Qatar enfrentasse problemas de cunho político, como a prisão de “algum ativista problemático dos direitos humanos, um irritante jornalista ou uma mulher que se queixou de ter sido estuprada (todos os casos que aconteceram no Qatar)”, afirmou o jornalista.
“As autoridades francesas vão reclamar. Os qatarianos ouvem, acenam com a cabeça e dizem: ‘Você não deve interferir com nossa cultura doméstica. Portanto, não devemos interferir com os seus. Venderemos o PSG’. Mais importante ainda: se o Qatar fosse invadido ou desestabilizado de qualquer maneira. A família dominante poderia justamente dizer: ‘Olhe, não temos tempo nem dinheiro para manter o PSG no topo do mundo do futebol’”, continuou Hill.
Diante de todos esses fatos, o canadense crê que, se o plano do Qatar funcionar com o PSG, o investimento em Neymar terá saído muito barato.
A melhor definição poderia vir dos tempos de Saddam Hussein quando, em 1992, o então assessor da campanha de Bill Clinton, James Carville, criou a frase “É a economia, estúpido!” para resumir o motivo da vitória do democrata sobre o então presidente republicano Bush. Voltando a 2017, al-Khelaifi poderia se sair com uma adaptação: “É a imagem, estúpido!”.