Depois de mais de uma década de ditadura militar, em 1984 se vislumbrava uma saída da fase mais escura da história uruguaia. Na época, começou germinando a transição para um governo democrático, mas nos quartéis a repressão continuava. Em abril desse ano, o regime encontrou a sua última vítima: o médico da origem russa Vladimir Roslik.
Agora, mais de três décadas passadas depois desta morte, um documentário não deixará o caso ficar sepultado no esquecimento.
"Roslik e o povo das caras suspeitamente russas" (Roslik, y el pueblo de las caras sospechosamente rusas) mostra a tragédia através dos relatos de duas pessoas que viveram na sua própria carne as consequências do assassinato do médico: sua esposa, María Cristina Zabalkin, e o filho, Valery. Segundo disse o diretor da obra, o filme "é uma reconstrução do passado através da atualidade".
"Depois das 24 horas em que levaram meu marido e me devolveram seu corpo, não sei o que foi que me iluminou. Talvez a injustiça e a mentira. Eu levei o cadáver e fui a outra cidade para fazer outra autópsia", contou María Zabalkin a Sputnik.
A arbitrariedade e a autópsia falsa ganharam visibilidade nacional com uma investigação do semanário Jaque. Em pouco tempo, todo o país estava ciente da injustiça cometida pelos militares. Desde então, María Zabalkin se tornou ativista do movimento para manter viva a memória de Valodia (o diminutivo de Vladimir em russo) e para esclarecer os fatos que tiraram a vida a seu marido.
"Para mim e para o meu filho foi muito traumático. Ele não recorda nada disso, mas contaram para ele e isso também é traumático", confessa Zabalkin.
"Temos que continuar procurando a justiça, porque há uma ausência total neste caso, e é capaz de eu, com 64 anos, já não conseguir vê-la. Isso eu compreendi quando eu tinha 30 e provavelmente Valery também não seja capaz de fazê-lo, mas talvez meus netos… um dia nós temos que saber por que aconteceu tudo isso", lamentou a viúva de Roslik.
Valery disse à Sputnik Mundo que o problema de sua geração é que não viram a ditadura com seus próprios olhos: "Não sabemos mais do que podemos ouvir, ler ou ver. É por isso que apoiamos tanto o documentário, para que estas gerações saibam o que aconteceu."
"O meu velho era para mim uma pessoa muito boa, com um coração grande e bem humilde, do povo, que dava tudo pelo próximo", disse o filho de Vladimir e María.
O registro do documentário muda de acordo com a parte que narra. As partes mais cruas são contadas através de animação. Goyoaga explicou que, ao começar falando com Valery, o jovem disse que ele viveu todo "um conto" do que os outros iam transmitindo, pois tinha poucos meses de vida quando seu pai morreu.
Na época, quando parecia que a Justiça ia poder investigar os crimes da ditadura, o Parlamento uruguaio aprovou uma lei para proteger da ação dos magistrados os casos ocorridos na ditadura. Como outros, o assassinato de Roslik "ficou preso nessa impunidade que se estava formando".
Em San Javier, o fato provocou feridas. De acordo com Zabalkin "dividiu o povo". "Há gente que sabe que tudo foi uma mentira, porém há outros que ficaram duvidando. Quando começam essas dúvidas e as suspeitas quanto a um vizinho, a sociedade começa se dividindo", disse a viúva de Roslik.
A impunidade judicial fez com que María mantivesse viva a memória de Vladimir através de ONGs para o benefício da população de San Javier.
Valery concluiu que "há que continuar lutando para que se saiba a verdade", apesar de ele e sua mãe estarem "um pouco cansados". No entanto, isso não é obstáculo para que ambos mantenham seu compromisso de fazer "tudo o que podem".
"Ela [María] já está muito esgotada. Ela já não tem o físico como antes e faz anos que eu lhe estou ajudando. Depois seguirei eu", concluiu Valery Roslik.