Olhando para estes rostos sorridentes e espírito único de persistência e força de vontade, nem dá para acreditar que toda essa criançada se vê obrigada a enfrentar inúmeras dificuldades a cada dia — alguns dos participantes vêm de orfanatos, outros — de zonas muito inseguras como, por exemplo, as meninas cariocas da favela da Penha.
"Tem que sair de casa sabendo que qualquer hora pode dar tiro, qualquer hora pode ter conflito, então temos que sair com a cabeça erguida, sabendo que qualquer hora… Então, na escola tem segurança, no futebol tem segurança, mas quando a gente vai para casa, a gente não sabe se vai conseguir chegar, porque em qualquer momento chega lá uma guerra, um traficante", contou uma das jogadoras brasileiras, Rebecca.
Quando um tiro acidental te ameaça todo o dia na rua, o esporte vira a única oportunidade de se sentir em paz e ganhar força — e com essa força desabafar em chutões ágeis toda a energia acumulada, tão grande que até elimina as barreiras entre nações, gêneros e idades.
Iniciativa humilde que virou história
Esta já é a 12ª vez que Moscou sedia o evento, com patrocínio de um dos maiores serviços de telecomunicações no país, Megafon. Segundo revelou durante a cerimônia de abertura o diretor-geral da empresa, Sergei Soldatenkov, a competição começou como um projeto exclusivamente regional, tomando uma dimensão cada vez maior.
Neste ano, o evento já contou com a participação de 11 equipes — do Brasil, Geórgia, Egito, Índia, Cazaquistão, Maurício, Letônia, Paquistão, Bielorrússia e Rússia. Vale ressaltar que todas as equipes eram formadas por meninos, menos a egípcia que era mista e a brasileira que era de meninas.
O Brasil, que sempre teve uma tradição sólida de futebol feminino, foi representado por um time de garotas que pasmaram todo o público com sua habilidade e façanhas técnicas.
Para facilitar a comunicação entre as crianças, bem como sua estadia na Rússia, foram envolvidos dezenas de estudantes da Universidade Russa da Amizade dos Povos, onde hoje em dia estudam pessoas de mais de 150 países. A equipe brasileira, particularmente, foi acompanhada por dois moços da Guiné-Bissau que fizeram todo o possível para ajudar e vibraram na torcida que nem os próprios técnicos.
Show de cariocas
Em dois dias da competição, as meninas da favela carioca parecem ter vivido toda a gama de emoções — desde regozijo até decepção. Talvez, o resultado (6º lugar no ranking) não tenha sido o esperado, porém, as meninas da Associação das Crianças de Rua Unidas certamente conseguiram mostrar um futebol de alto patamar e encantar todo o mundo com sua persistência e talento.
Entre os adversários das garotas estiveram cazaques, georgianos, paquistaneses, indianos e bielorrussos. Os últimos, por sua vez, ficaram tão pasmados com o desempenho da equipe brasileira que fizeram questão de assistir todos os jogos, cantando lemas e tentando até gritar algumas frases em português. Aliás, por mais forte que seja a concorrência, ela não impede que a gente faça amigos de todos os cantos do mundo e torça pelo recente adversário que nem por si mesma.
A trajetória das brasileiras no campeonato, por mais engraçado que pareça, até se pode avaliar como uma espécie de triunfo do feminismo — as meninas enfrentavam os garotos com determinação e ousadia, enquanto estes não poupavam truques duros no campo. Obviamente, os times masculinos, especialmente o paquistanês, que acabou por ganhar a competição, estavam mais inclinados a demonstrar um jogo agressivo, o que, em certa medida, prejudicou o resultado brasileiro no placar.
Porém, para a número 8 do time, Ana Carolina, o desafio de jogar contra meninos não é assim tão grande.
"Habilidade para mim é a mesma, a única diferença é a força deles, mas na verdade não muda nada. Só levam vantagem na força mesmo, no corpo, só nisso", disse.
Outra jogadora, Rebecca, número 7, revelou que os meninos no campo estão "jogando futebol deles" e, claro, costumam ser mais agressivos que as garotas. Entretanto, isso não pode impedir que o time saia no campo e jogue da melhor forma possível independentemente das capacidades físicas do adversário, adiantou.
Segundo revelou à Sputnik Brasil o supervisor do projeto e presidente da associação regional da iniciativa filantrópica britânica Street Child World Cup (Copa do Mundo das Crianças de Rua) no Rio, Adam Reid, na favela da Penha há 3 técnicas que se ocupam do treinamento das meninas. Uma delas, Jessica, viajou com as meninas até a Rússia.
"O projeto é herança da Copa do Mundo das Crianças de Rua em 2014, dado que a próxima Copa se decorrerá aqui [em Moscou] no ano de 2018. Obtivemos algum financiamento da Chevrolet [empresa de veículos motorizados estadunidense] para construir um campo de futebol em pleno morro da favela Complexo da Penha, uma das mais perigosas, mas conseguimos um acordo com os policiais e traficantes para deixar segura essa área. Temos entre 40 e 50 jovens, meninas e meninos, que treinam e praticam futebol lá todos os dias exceto o domingo", contou.
Adam revelou, além disso, que em tais regiões desfavorecidas como as favelas brasileiras o futebol é, verdadeiramente, uma ferramenta inédita de motivação e crescimento pessoal dos jovens.
"Sabe, futebol e esporte em geral é muito importante para a juventude. Não se trata, verdadeiramente, apenas das expectativas de virar um jogador profissional em um clube, pois há poucos que conseguem fazê-lo. Mas o fato deles poderem sair, competir, é muito melhor do que várias outras coisas que poderiam estar fazendo nessas condições. É uma oportunidade de tirá-los da rua, deixá-los longe dos traficantes de drogas, incentivá-los a fazer outras coisas, como andar na escola", revelou.
Entretanto, o supervisor revelou que a organização promove também a aprendizagem do inglês pelos jovens atletas, citando uma visita do clube Manchester United ao Complexo da Penha.
"Mostramos a eles outro lado do mundo que existe para além dos seus parâmetros, digamos", resumiu Adam.
Futebol como meio de inclusão social
Para um país como o Brasil, que se caracteriza por particularidades sociais históricas, sobretudo uma desigualdade gritante e grandes proporções de pobreza, o esporte sempre representou uma chance especial para os jovens se motivarem para se desenvolverem e atingirem novos patamares.
Em uma conversa com a Sputnik Brasil, o representante da embaixada brasileira em Moscou, o terceiro secretário Paulo Cesar do Valle Torres, manifestou que o futebol, certamente, é uma importantíssima ferramenta de inclusão social no país.
"Fico muito contente que esse evento ocorra aqui, na Rússia, faltando menos de um ano para a Copa do Mundo. […] Sobretudo, há uma dimensão social do esporte e de futebol que é a questão de inclusão dessas crianças, dessas meninas e meninos que praticam o esporte no Brasil. Futebol é um grande expoente da democracia no Brasil, um grande possibilitador, catalizador de ascensão social. Até quando a gente olha para os grandes jogadores brasileiros, em geral eles têm uma origem muito humilde", manifestou.
Assim, não se trata apenas de futebol, sublinhou o diplomata. Vale relembrar, por exemplo, a história sensacional da judoca Rafaela Silva que, saindo da favela Cidade de Deus, conseguiu se tornar a primeira campeã mundial de judô feminino brasileiro, conquistando ainda um título olímpico nas Olimpíadas do Rio de 2016.
"É muito bacana, é uma das grandes ferramentas, grandes 'assets' do Brasil, sinceramente. […] O futebol, além de ser esse possibilitador de ascensão social, é um esporte muito democrático. Às vezes você não precisa nem de uma bola de futebol. […] Às vezes é com bola de meia, pode ser bola de capotão, tem vários tipos", contou o diplomata, confessando que ele próprio recebeu uma bola de meia do seu avô com 7 anos da idade, e até a levou para a Rússia "de estimação".
O representante da embaixada também expressou a esperança que toda a infraestrutura olímpica que se gerou no Brasil continue a florescer e a ajudar os jovens atletas a crescer.
E, na verdade, para estas garotas que deram show em um dos maiores complexos esportivos de Moscou, em 26 e 27 de outubro, o futebol é tudo. Falando com a Sputnik Brasil, algumas das craques mais eminentes da equipe — Rebecca, Ana Carolina e Jessica — revelaram sua paixão eterna por essa modalidade que as faz sentir alheias a todas as dificuldades.
"Futebol para mim é tudo, porque quando eu estou jogando futebol, esqueço dos problemas, da guerra que está por aí. Tornar jogadora de futebol, claro, é nosso sonho, e nunca [se pode] desistir do nosso sonho, porque tudo é possível", contou Jessica.
Ao falar da sua paixão, o olhar das meninas diz tudo por si só — não é apenas um hobby, mas já virou o sentido da vida.
"Futebol para mim é tudo, porque dentro do campo, onde a gente esquece dos problemas, isso faz bem à gente. Porque por mais que a gente tenha guerra por fora de campo, é um momento para a gente se distrair, focar somente naquilo. E o nosso sonho, de todas, é virar jogadora. Independentemente do que os outros falam, do preconceito da menina não poder jogar futebol, a gente levanta a cabeça e continua seguindo em frente, porque desistir não é o foco", manifestou outra craque, Ana Carolina.