A Sputnik teve acesso aos depoimentos oficias de Koba Nergadze e Aleksandre Revazishvili. Uma coincidência bem curiosa: o ex-presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili, foi expulso da Ucrânia um dia depois de a Sputnik ter anunciado a publicação da matéria sobre a investigação. No dia seguinte ele teria que se apresentar perante o tribunal para falar sobre o processo dos franco-atiradores.
Nergadze e Revazishvili assumiram a obrigação de "apresentar testemunhos (esclarecimentos) verídicos aos advogados e, mais tarde, no tribunal".
Os supostos franco-atiradores contam muito detalhadamente sobre si mesmos e sua vida na Geórgia. Ambos no passado eram partidários ativos de Saakashvili. Nergadze era agente do assim chamado "sonderkommando" e Revazishvili era membro da organização Zona Livre. Ambos se ocupavam de intimidação de oposicionistas, espancamentos e provocações. Nergadze passou por treinamentos no estrangeiro, na Grécia, Alemanha e Lituânia. Foi ensinado, inclusive, a lidar com manifestantes: como obter informações, organizar as pessoas e criar situações de conflito.
Pela viagem a Maidan o grupo de Nergadze recebeu US$ 10.000 (R$ 32.957), outros US$ 50.000 (R$ 164.785) foram-lhes prometidos serem pagos depois do regresso à Geórgia.
Hoje em dia Koba Nergadze e Aleksandre Revazishvili estão se escondendo no território da Armênia temendo por sua vida. O apelo a tribunais e advogados é uma tentativa de tornar o caso público e assim se protegerem. Segundo eles contaram ao correspondente da Sputnik, aqueles que participaram do tiroteio em Maidan morreram posteriormente em circunstâncias estranhas.
A Sputnik apresenta alguns fragmentos dos depoimentos oficiais apresentados por Nergadze e Revazishvili sobre sua estada em Kiev:
- Aleksandre Revazishvili:
No fim de janeiro de 2014 Koba Khabazi chamou Gogokhiya, Kemularia, Kipiani e a mim ao seu escritório da Zona Livre e nos ordenou para viajarmos para Kiev. Ele deu a cada um de nós US$ 1.000 (R$ 3.295) dólares e prometeu mais US$ 5.000 (R$ 16.475) depois do serviço. Ele não explicou o objetivo da missão, disse apenas que era para participar dos protestos em Maidan, ajudar os manifestantes. Nós os quatro, junto com Khabazi, chegamos a Borispol em um voo comum da companha UIA (as aeromoças eram ucranianas). No aeroporto fomos recebidos por Mamulashvili. Ele pegou nossos passaportes e se ocupou pessoalmente de preencher formalidades no posto de controle. Fomos levados ao mesmo apartamento na [rua] Vozdukhoflotsk. No dia seguinte Mamulashvili nos levou a Maidan e nos alojou em uma tenda situada em Maidan. Em Maidan, Khabazi nos deu instruções: tínhamos que provocar os manifestantes e passar à ofensiva. Nosso grupo em meio aos manifestantes participou de ações de força contra efetivos do Berkut: lançamos pedras e garrafas com coquetel Molotov. Em Maidan foi organizado o seguinte processo: uns traziam pedras, as posicionavam e passavam garrafas com coquetel Molotov, outros grupos atacavam o Berkut e a polícia. Todos esperavam que logo o Berkut passaria ao assalto final.
Os que estavam lá presentes quase não comunicavam com a gente, usavam apelidos. A disciplina lá era estrita, não era como em Maidan. Todos obedeciam apenas a Pashinsky. Entendi que aqui estavam reunidas pessoas para cumprir uma missão concreta.
Em 19 de fevereiro chegaram Mamulashvili, Georgy Saralidze (apelido Malysh, [Pequeno] franco-atirador), Kikabidze, Kalandadze (ex-chefe do Estado-Maior no governo de Saakashvili) e mais cerca de dez pessoas, não conheço os outros. Mamulashvili se interessou como estávamos. Eles estavam rindo. Kolonadze perguntou a Mamulashvili em georgiano: "Cadê Misha?' Ele respondeu: "Está com Porokh."Depois Mamuka passou para o russo e chamou Pashinsky. Com que objetivo eles vieram, eu não sei. Ele foi embora com Pashinsky. Algum tempo depois, Pashinsky e mais alguns homens trouxeram para o prédio bolsas com armas. Na maioria eram carabinas SKS. O próprio Pashinsky tinha nas mãos uma Kalashnikov de calibre 7,62 com coronha aberta.
Na noite de 19 de fevereiro apagaram as luzes no conservatório. Não sei para quê. Passada uma hora, um grupo de pessoas trouxe para a varanda três ou quatro projetores, os ligaram e os dirigiram em direção a Maidan. Percebi porque o fizeram: não há luz no prédio e não se pode ver quem está lá dentro e os projetores iluminam o lugar a atingir e cegam aqueles que vigiam o prédio.
O fogo era feito diretamente do parapeito no segundo andar através das janelas grandes do conservatório. Os atiradores estavam vestidos de modos diferentes, uns usavam camuflagem. Pashinsky e Parasyuk com seu pai estavam de negro. Muitos usavam máscaras. Pashinsky atirava de sua metralhadora com rajadas curtas. O jovem Parasyuk: de carabina Saiga, seu pai de carabina SKS, ele estava dentro do prédio junto à parede ao lado da janela.
Alguns minutos depois, ouvi tiros do lado do hotel Ukraina. De lá o fogo era mais intenso. Os tiros do conservatório continuaram por 10-15 minutos.
Os manifestantes falavam entre si e ouvi que alguns consideravam que atiraram os próprios manifestantes; outros pensavam que tivesse sido o Berkut ou policiais. Alguns estavam com armas nas mãos: espingardas de caça. As pessoas estavam iradas. Voltamos para a tenda e esperamos por Mamulashvili e Khabazi. De dia ouvimos tiros perto do hotel Ukraina. Kipiani não veio. Tentávamos não sair da tenda. Passamos a noite. No dia seguinte em Maidan foram realizadas cerimônias fúnebres, ouvi através dos alto-falantes discursos de Klichko, Yatsenyuk e de alguém mais. Os apresentadores explicavam que o tiroteio foi organizado por Yanukovich e que foi ele que ordenou ao Berkut para abrir fogo.
Avaliada a situação, voltamos para a tenda, tentávamos aparecer menos vezes em Maidan. Passamos mais uma noite, porque esperávamos que alguém da chefia viesse para nos dizer o que fazer.
Dato, passeando por Maidan, soube de algum dos nossos compatriotas que Kipiani estava morto, foi encontrado com a cabeça perfurada. Depois disso eu deixei logo Maidan, pois entendi que me eliminariam como testemunha. Fui ao aeroporto Borispol e parti para Tbilisi. Avtondil e Dato ficaram em Maidan. Onde eles estão agora e o que aconteceu com eles, isso eu não sei."
- Koba Nergadze:
Em dezembro de 2013 todos os efetivos do serviço foram reunidos por Mamuka Mamulashvili, que declarou que era necessário partir urgentemente à Ucrânia para ajudar os manifestantes. Consideramos isto como uma ordem. Cada chefe de grupo, inclusive eu, recebeu dinheiro. Eu recebi US$ 10.000 (R$ 32.957) para o meu grupo: US$ 1.000 (R$ 3.295) para cada um. Além disso, ele prometeu que pagaria mais US$ 50.000 (R$ 164.785) para todo o grupo depois de a gente voltar. Disse para cada um dar uma foto para o passaporte. Mamuka Mamulashvili voou com o meu grupo. No aeroporto de Tbilisi Mamulashvili recolheu todos os passaportes e nos ajudou a passar o controle da guarda fronteiriça, que não fez nenhuma observação. No avião ele distribuiu-nos passaportes com nomes de outras pessoas. Eu recebi um passaporte com o nome de Georgy Karusanadze, ano de nascimento 1977. Percebi que Manulashvili nos ajudou a passar a guarda fronteiriça com documentos falsos. Era um voo fretado.
No hotel Ukraina, além de nós e ucranianos, havia alguns lituanos e poloneses.
Em 14-15 de fevereiro os chefes de grupos: eu, Kikabidze, Makishvili, Saralidze, não lembro os nomes de outros, fomos reunidos no terceiro andar por Andrei Paruby, Andrei Pashinsky, Mamulashvili e Brian. Paruby discursou perante a gente com as palavras: "…é necessário ajudar o povo irmão ucraniano e logo teremos uma nova missão." Eu tentei detalhar de que se tratava, mas Paruby disse que iria informar mais tarde. Naquele tempo em Maidan estava aumentando a tensão entre manifestantes e efetivos do Berkut. Vi nas mãos de manifestantes espingardas de caça, pistolas e coquetéis Molotov. Havia constantes confrontos físicos com policiais com uso de correntes e pedras. Os policiais não tinham armas de fogo, do que se aproveitavam os manifestantes.
De manhã cedo, aproximadamente às 08h00, ouvi tiros do lado do conservatório. Depois de três ou quatro minutos, os grupos de Mamulashvili abriram fogo do hotel Ukraina. Eu estava no corredor do terceiro andar e vi, ao passar pelo andar, que dos quatros cujas janelas davam a Maidan o atirador atirava e seu colega fechava a janela depois de cada tiro, abrindo-a antes do próximo tiro. O atirador atirava à distância de 0,5 metros da janela. Os pares mudavam de quarto depois de efetuar o tiro e de lá efetuavam outro. Posso dizer que os pares de atiradores faziam aproximadamente 4-5 tiros durante 20 minutos. Depois tudo ocorreu conforme o plano: os atiradores deixaram as armas no quarto e saíram rapidamente do hotel. Quem e como tirou armas do hotel, isso eu não vi. Eu e Bezho ficamos no andar, mas como não encontramos Mamulashvili, descemos ao hall do hotel. Lá eu vi um ucraniano do círculo de Pashinsky, Paruby, (conhecido de Bezho) que disse: "…saiam daqui, senão terão problemas."
O passaporte que me deu Mamulashvili para viajar à Ucrânia, eu queimei na Geórgia. Hoje em dia uso o meu passaporte real.
Os outros membros do meu grupo também partiram para Tbilisi.