"Elas provavelmente estão dançando embaixo de uma árvore ao lado da Avenida", diz o escocês Adam Reid pelo WhatsApp, tentando ajudar a reportagem a encontrar as meninas debaixo do sol a pino da capital carioca.
Estamos diante do deslumbrante Pão de Açúcar, no Aterro do Flamengo, para acompanhar um dos treinos de domingo das meninas que vão representar o Brasil na Street Child World Cup. O evento esportivo reunirá 24 seleções de crianças carentes do mundo todo em uma competição realizada na Rússia a partir do dia 11 de maio.
Adam representa o projeto no Brasil e é o último a chegar. As 9 meninas, que ensaiam uma música de funk para uma apresentação cultural do evento estão descontraídas, riem, dançam e perguntam a Adam sobre músicas em inglês que não conseguem decifrar. Elas não vêem a hora de embarcar logo para a Rússia.
"Estou muito ansiosa para poder ir para a Rússia. As amizades! Até as amizades que tem lá, estou ansiosa para revê-los. Muito bom lá, ansiosa demais! Todo dia eu acordo e acho que é o dia certo para poder viajar", diz Taisa Melo de Souza, de 17 anos, a habilidosa capitã da equipe.
Elas treinam duro para fazer bonito na Rússia. Para jogar em um campo com as dimensões adequadas elas enfrentam uma distância de 30km aos domingos entre a região da Penha, na Zona Norte da cidade, e o Flamengo, na Zona Sul.
Em 2014, Drika foi campeã com o Brasil jogando o campeonato no Rio de Janeiro. Ela lembra que o time ganhou a maioria dos jogos com placares elásticos, de até 14 gols de diferença, e torce para que a história se repita na Rússia. Após ser campeã, Drika viajou o mundo fazendo cursos de capacitação com o projeto que hoje ajuda a coordenar no Rio. "Acho que elas vão voltar de uma forma diferente, assim como eu voltei também. Com aquela coisa de que não é só futebol, é amor, é família, é respeito. Foi isso que aconteceu comigo, acho que é isso que vai acontecer com elas também", conta uma das treinadoras do time, Drika Santos.
Com idades entre 15 e 17 anos, as meninas vão embarcar na terça-feira (8) em direção a Moscou, onde será realizado o evento.
"A gente está treinando e começam os tiros"
Para chegar até a favela do Caracol saindo de onde treinam aos domingos é necessário mais de um tipo de transporte. Após 40 minutos de metrô e mais 40 minutos de van até o Complexo de Favelas da Penha, um moto-taxi te leva até o topo do Morro do Caracol pelas ruelas sinuosas da favela em não mais que 10 minutos.
As meninas, que sonham com o mundo, vivem uma realidade de pobreza e violência na vizinhança muito diferente dos treinos ao lado do Pão de Açúcar. A região da Penha é conhecida por confrontos armados e ficou famosa após imagens de fuga em massa de traficantes durante uma ocupação policial em 2010. Lá de cima, um campo de futebol improvisado quase flutua sobre uma vista privilegiada de toda a região. É lá no campinho Família Caracol onde o grupo treina toda semana se preparando para representar o Brasil na Rússia.
"Tem vezes que a gente não espera, a gente está treinando e começam os tiros, os confrontos entre eles e a gente tem que parar o treino, tem que correr", conta Ana Carolina Campos Lima, de 16 anos. As jogadoras relatam que em várias ocasiões tiveram que se esconder de tiroteios enquanto treinavam.
A situação que chega a impedi-las de treinar quase não comove de tão corriqueira. "Para a gente, assim, já é normal. Não é normal para as pessoas que são de fora, mas para a gente já é normal", relata Ana Clara Ferreira da Silva, de 15 anos.
Do topo da favela para a Praça Vermelha
É de olho em realidades como essa que o Street Child United oferece oportunidades a crianças carentes ao redor do mundo. A instituição que organiza o campeonato que levará as meninas à Rússia é também responsável por um projeto permanente no Morro do Caracol.
A treinadora Drika Santos acredita que o projeto pode ajudá-las a superar o contexto de vulnerabilidade. "Em vez de elas ficarem nas ruas depois da escola, porque na rua é perigoso, pode ter tiroteio a qualquer momento, pode se envolver com drogas, porque está muito próximo, está muito fácil. Aí elas vão para o projeto, se divertem, conversam sobre os problemas, se distraem", conta.
Meninas como Taisa Melo têm a realidade tocada diretamente pela ação. Os constantes tiroteios na região, segundo ela, a impediam inclusive de fazer amizades, pois seus pais não a deixavam sair de casa temendo pelo pior. "Poxa, mudou minha vida muito, porque eu não tinha amizades. Então ali fui criando minhas amizades, as meninas são como irmãs para mim. Ali tira minhas brigas de dentro de casa, ali me deixa muito feliz", conta Taisa.
Caso semelhante ao de Rafaela Cristina Granthom Nascimento, de 15 anos, que sonha em ser zagueira e lembra que o projeto ajudou a resgatar seu sonho. "Eu pensei que seria muito difícil. Mas elas me ajudaram muito também, o projeto me ajudou a erguer minha cabeça, não desistir do meu sonho, e lutar", conta.
A maioria das meninas já saiu do país pelo menos uma vez junto com o projeto. Rebeca Cristiny Santos, de 16 anos, por exemplo, já conheceu a Inglaterra, a Rússia e a Alemanha. Em outubro de 2017, o projeto organizou um evento em Moscou e levou a maior parte do time para participar.
"Agora com essa oportunidade que elas estão tendo é sonho realizado. Porque acho que toda criança que mora em uma comunidade carente que não tem uma vida muito boa, com muito dinheiro, com muito recurso, sonha em poder viajar, em poder realizar tudo que um dia parecia impossível", afirma esperançosa a treinadora da equipe.
Ana Clara Ferreira lembra que a oportunidade também foi uma forma de resgatar sua auto estima. "Eu pensei que nunca ia sair do Brasil e acabei saindo, essas coisas do futebol! Eu sempre quis ser jogadora de futebol. Aí, tipo, me senti importante, porque eu saí do Brasil, joguei e outras pessoas viram, passou na televisão".
O campeonato será disputado também por meninos, mas a oportunidade para as meninas é uma forma de valorizar o esporte que apenas engatinha no Brasil quando o assunto é promover os times femininos.
Em uma idade em que muitos meninos já passaram por categorias de base, poucas das meninas conseguiram espaço para treinar em times da cidade.
A menina Ana Carolina conta, aos 16 anos, que o projeto foi uma forma dela acreditar um pouco mais no sonho de ser jogadora. "Eu sempre gostei de futebol, eu sempre fui interessada. E depois, para menina, é mais difícil. A gente desacredita um pouco a mais pelo fato de não ter muitas oportunidades para meninas. Mas depois que eu entrei no projeto, criou muitas oportunidades. Foi onde eu comecei a acreditar que eu realmente posso ser uma jogadora profissional".
E é em busca principalmente de um sonho que as meninas brasileiras se esforçam para superar dificuldades. Com a experiência de quem ontem não podia sequer sair de casa e amanhã embarca em um vôo direto para a Rússia.
"Além das dificuldades que podem ocorrer, alguém falar 'ah, você está assim, você nunca vai conseguir isso'. Não vai pela cabeça dos outros. Sempre você tem que confiar em você mesmo e nunca desistir dos seus sonhos", conclui Jéssica Pinheiro do Vale, de apenas 15 anos.