O sangue de Dourival derramou quando os três caminhões que levavam os indígenas para a Fazenda São Benedito, em Sete Quedas, Mato Grosso do Sul, foram avistados por participantes de uma festa junina que ocorria nas proximidades. O então vereador Valdomiro Luiz de Carvalho incitou os presentes a esperar o retorno dos veículos e formou um bloqueio com outro caminhão e homens armados — segundo o Ministério Público Federal (MPF) em sua denúncia.
Nas urnas, Valdomiro é Miro do Carioca. Ele nasceu em 1967 em Umuarama, Paraná, é casado e possui ensino fundamental incompleto. Em sua primeira eleição, afirmou que sua ocupação era agricultor. Foi vereador de 2005 a 2014 em Sete Quedas — cidade de 11 mil habitantes que faz divisa com o Paraguai — e chegou a presidir a Câmara dos Vereadores. Nos pleitos que disputou, Valdomiro não declarou nenhum bem.
Um dos três veículos dos Guarani-Ñandeva que participaram da ocupação não conseguiu escapar do bloqueio e seus quatro ocupantes foram capturados pela turba liderada por Valdomiro. Eles foram amarrados, espancados durante toda a madrugada enquanto eram chamados de "raça ruim" e também ouviam que "paraguaio e índio tem que matar tudo". Foi ateado fogo ao caminhão que dirigiam e seus pertences foram roubados.
Com o nascer do dia, o grupo decidiu ir até a ocupação indígena na Fazenda São Benedito e levou consigo dois dos capturados na carroceria de uma caminhonete F4000. Durante o caminho, por telefone, convocaram armas e jagunços de outros proprietários rurais da região. O plano era utilizar os detidos como moeda de negociação — e transmitir a mensagem de que caso a ocupação não fosse desfeita, eles seriam mortos.
Quando Dourival Benítez aproximou-se para conversar, foi atingido por um tiro no peito e seu irmão, Ari, foi alvejado na mão. Eram 7 horas da manhã de 26 de junho de 2005.
Mercê contou para a Sputnik Brasil que, após ele enterrar seu irmão, policiais do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) lhe disseram que ele precisaria sair da ocupação. Diante de sua negativa, ouviu a seguinte ameaça: "Se não sair de boa, você vai sair na bala."
Mercê também recebeu tentativas de suborno de fazendeiros da região que enviaram como emissários capangas e até mesmo policiais do Paraguai. Recusou ofertas de R$ 180 mil, R$ 200 mil e R$ 280 mil.
"Como que eu vou pegar dinheiro pra sumir? Deixar sem nada meu povo?", disse Mercê Benítez para a Sputnik Brasil.
Hoje, a área reclamada pelos Guarani-Ñandeva é reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como território indígena Sombrerito. A terra, contudo, ainda não foi homologada e regularizada, o que significa que seus limites não foram reconhecidos pela Presidência da República e identificados em cartório.
Antes dos cartórios e dos brasileiros, dos fazendeiros e jagunços, do Brasil e do Paraguai, a região já era habitada pelos Guaranis. Sítios arqueológicos com elementos distintivos da etnia indicam que os Guaranis vivem na região desde dez séculos antes da chegada dos colonizadores portugueses ao Brasil., afirma o relatório de identificação do território Sombrerito.
Com a derrocada do plantio de erva mate, os índios foram novamente expulsos de seu território, dessa vez para a monocultura de soja, milho e cana-de-açúcar.
Mercê conta que com a chegada do latifúndio, a caça e o modo de vida tradicional de seu povo foi afetado. Antes, afirma o Guarani-Ñandeva, não havia "mercadoria", mas sim animais como "tatu, cateto e queixada" para caçar. Também não havia o agrotóxico, que causou dor de cabeça e diarreia em crianças que beberam água de um rio da região quando os poços artesianos que utilizavam quebraram.
Ele também conta que sua cabeça está a prêmio e que já sofreu um atentando. Segundo Mercê, Valdomiro lhe disse que pagará o prêmio de R$ 40 mil para quem o matar. Ainda assim, ele diz que prefere ficar na terra onde estão enterrados seus antepassados.
"Porque a gente, se matar, se eu caio, enterra, fica meu irmão, meu filho também. Eu tenho 11, minha família."
Contactado pela reportagem, o ex-vereador Miro do Carioca nega que tenha ameaçado Mercê Benítez. "Claro que eu nego, não ameacei, nunca andei armado, não uso arma. Quem me conhece sabe, eu moro aqui faz 35 anos. Eu nunca usei arma e tenho nojo de quem usa arma", afirmou o antigo presidente da Câmara Municipal de Sete Quedas, Mato Grosso do Sul.