O povoado, que acolhe cerca de 1.500 bôeres, faz questão de preservar sua herança cultural e sua língua que, sendo um dos principais idiomas da África do Sul, está ficando cada vez mais ausente dos cursos escolares e universitários.
Quem pode viver em Kleinfontein?
Dannie afirma: sim, a Kleinfontein não chega qualquer um, inclusive por questões de segurança. O processo de venda e aluguel das vivendas é controlado pelo Conselho de Administração, e nessa etapa é crucial entender, em primeiro lugar, as ambições do candidato a residente.
"Se sua primeira resposta for: 'Realmente odiamos os negros', diremos — desculpa, não é uma boa razão. Se sua segunda resposta for: 'Parece barato…' Sim, ok, e que mais? 'Eu realmente me identifico com os africâneres, a língua africâner é importante para mim, a cultura africâner é importante para mim, gostaria de criar meus filhos em um ambiente seguro em meio a africâneres…' — essas são as respostas certas", explica o entrevistado.
Embora o processo de admissão à comunidade seja minucioso, a administração faz questão de a alargar o mais possível, aliás comprando as propriedades que aparecem à venda por perto e mantendo o preço de compra e aluguel em patamares bem baixos. Isso, na opinião dos habitantes de Kleinfontein, os ajuda a preservar suas terras e se protegerem das tentativas de expropriação e ataques de fora.
"Vendíamos um hectare de terra por 2.000 euros [mais de 8.700 reais] no início, apenas para fazer as pessoas ficarem aqui, especialmente os africâneres. A motivação era para apenas chegarem e ficarem aqui, pois quando você está em uma propriedade as chances de alguém vir e invadi-la são menores", narra Dannie.
Contudo, durante nossa excursão evidenciamos que os boatos assegurando que "um negro não entraria em Kleinfontein" não têm nada a ver com a realidade. Por exemplo, em uma das ruas trabalhadores negros estavam descarregando um caminhão com produtos encomendados. Dannie conta: claro que para tais tarefas seria simplesmente "inconveniente" e irracional parar um veículo na entrada e "enchê-lo com africâneres". Por isso, aqui se pode encontrar pessoas de várias raças e culturas, porém, normalmente elas estão de passagem.
'Roubo' de terras na África do Sul
Em fevereiro do ano corrente, o parlamento sul-africano votou um projeto de lei que regulariza a expropriação das terras de fazendeiros brancos, sem concessão de qualquer tipo de compensação, apresentado por um partido de extrema esquerda, EFF, e apoiado pelo partido no poder, o Congresso Nacional Africano.
Atualmente, a resolução final está sendo elaborada pelo Comitê Constitucional do parlamento até agosto e, caso seja aprovada pelo presidente do país, Cyril Ramaphosa, significará a introdução das respetivas emendas na Constituição.
Ao falar sobre a possível preocupação que os habitantes de Kleinfontein possam ter em relação à proposta dos deputados, Dannie assegura que ela é menor do que fora da sua comunidade.
"Acho que é maior fora de Kleinfontein. Porque estamos juntos. O irmão da minha namorada herdou uma propriedade rural no Estado Livre [província da África do Sul] com centenas de hectares. Se eles quiserem tirar essas terras sem compensação, ele será um homem sozinho para lhes oferecer resistência por todos os meios, sejam físicos, sejam legais", argumenta.
"Mas nós somos uma comunidade de 1.500 pessoas, será com esse número de pessoas que eles terão que lutar para tirar nossas terras", continua Dannie com ar entusiasmado.
Assim, adianta um dos administradores da comunidade, a ameaça é "muito real", mas os políticos provavelmente "vão pensar duas vezes" antes de fazer algo parecido com Kleinfontein.
Projeto da 'Nova África do Sul' está falido?
Em nosso breve passeio pelas ruas do povoado, Dannie nos apresenta Dorothea Steenkamp, diretora da escola local que está focada, em primeiro lugar, em desenvolver a aprendizagem do idioma africâner e preservar a identidade cultural de bôeres em Kleinfontein.
A escola acolhe mais de 40 crianças entre 4 e 15 anos de idade e se desenvolve, particularmente, graças a doações dos próprios pais e de pagamentos filantrópicos por parte de pessoas jurídicas e físicas.
Ao refletir sobre a condição do povo africâner na África do Sul contemporânea, Dannie tira a conclusão que seus conterrâneos não têm muitas opções em cima da mesa para poderem escolher.
"Nós temos sido afastados das escolas, das universidades, dos empregos… Um africâner tem apenas duas opções: imigrar ou se concentrar", diz.
Uma das razões para isso é, pelo visto, a escassa representação de africâneres nas instituições de poder na era pós-apartheid, como parte da assim chamada política de ação afirmativa.
"Deixamos de ter um governo [que nos represente]. A língua, que é minha língua materna, deixou de ser falada no parlamento. Não há ninguém lá que me represente. Sim, tem um pequeno partido político que é o chamado Frente da Liberdade que defende, digamos, quem é um africânder verdadeiro. Mas eles nem têm 1% dos votos, não têm nenhum poder político, a única coisa que podem fazer é um manifesto e pronto", lamenta Dannie.
Julgando por aqueles obstáculos que os africâneres enfrentam hoje em dia em quase todas as esferas da vida, de repente surge a sensação de que as mesmas políticas da era do apartheid estão sendo aplicadas hoje em dia contra esse povo.
Para os apoiantes dessa atitude, a causa disso é evidente — isto é, compensar pelas feridas do passado — mas a outra questão é se na verdade é justo colocar toda a responsabilidade sobre um povo inteiro pelas coisas que seus antepassados cometeram.
"Se a pergunta for: 'Será que um africâner realmente se sente assim tão ameaçado aqui na África do Sul?', a resposta seria 'certamente' — você pode ser assassinado em sua propriedade, você é rejeitado em oportunidades de emprego simplesmente por ser branco, sua língua está ameaçada nas universidades, nas escolas. O governo não pagaria por uma escola africânder, eles a fechariam", explica o nosso interlocutor.
Em consequência disso, Dannie tem certeza: a visão do país promovida pelos combatentes pela democracia e unidade, liderados por Madiba, hoje em dia está completamente transtornada.
Além disso, falamos com Dannie sobre o porquê da ausência de apoio aos africâneres, que são descendentes de holandeses, por parte dos países europeus, em primeiro lugar da Holanda e da Bélgica, sendo que estas partilham a mesma herança cultural.
"Parcialmente, eles reagem […] Mas o mero fato de nós sermos uma nação homogênea e termos pele da mesma cor torna esse assunto racista", responde Dannie.
"[Contudo], eu acho que […] cada vez mais pessoas na Europa estão ficando conscientes de que isto é de fato um genocídio cultural. De repente, os cidadãos holandeses começaram a dizer: 'São pessoas que fazem parte do nosso povo, os africâneres são nossos descendentes…", acrescenta.
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