No início do mês de julho, a Prefeitura de Manaus decretou estado de emergência em função do surto de sarampo registrado na capital do Amazonas. Segundo o Ministério da Saúde, até o dia 8 de agosto 1.100 pessoas estavam infectadas com a doença, sendo que os estados de Roraima e do Amazonas registraram 1.069 casos confirmados de sarampo e mais de 5 mil em investigação.
Pelo menos 5 pessoas já morreram em razão do surto: 3 venezuelanos e 2 brasileiros (um bebê indígena yanomami de 9 meses e um outro bebê de 7 meses).
A doença estava erradicada no Brasil desde 2016. Segundo o Governo Federal, o surto está relacionado à importação do vírus da Venezuela. O vírus de genótipo D8, em circulação no país, é o mesmo que circula no vizinho latino-americano.
Profissão de risco
"No Rio de Janeiro temos o fenômeno conhecido por todos que é a questão da violência estruturada. As clínicas de Saúde da Família, que atendem dentro desses territórios marcados pela questão da violência, às vezes, ficam impossibilitadas de atuar. Porque somos humanos, não somos blindados, não somos de aço", desabafa Renata Pedreira — mestre em enfermagem, enfermeira da Estratégia de Saúde da Família, mulher e negra. Renata compartilhou sua experiência e esclareceu certos aspectos que só uma sanitarista com trabalho de campo na área da saúde pode saber. Ela trabalhou com atendimento básico na comunidade da Rocinha, a maior favela da América Latina.
Segundo a entrevistada, quando acontecem as guerras dentro do território, a Clínica da Família adota uma classificação de risco. A classificação verde é quando as equipes estão liberadas para ir à área; a amarela significa um estado de atenção e tiros contínuos nas proximidades da unidade; e a vermelha é quando o tiroteio está intenso a ponto de a unidade fechar.
"Por muitos meses a violência permeou o nosso processo de trabalho. Então ficávamos continuadamente em amarelo, o que impossibilitava ir até o território para realizar busca ativa, para ajudar e assistir a população com restrição de mobilidade e para verificar a caderneta de vacinação das crianças", explica Renata Pedreira.
Ela destaca que o congelamento de verbas para a saúde e a gestão da saúde privatizada se somam à violência nas comunidades do Rio de Janeiro. A maioria das Clínicas da Família se localiza em áreas vulneráveis. Por isso a Estratégia de Atendimento à Família compartilha o sofrimento dos moradores da comunidade. "Isso impede que a gente avance em um atendimento de qualidade por causa da segurança pública", diz ela.
A violência é um dos fatores que reduzem o alcance das equipes de atenção básica no Rio de Janeiro e em todo o Brasil. No entanto, "o buraco é muito mais embaixo", segundo a própria Renata, a vigilância epidemiológica e profissionais na ponta do atendimento à população.
A mudança na legislação e o congelamento das verbas por 20 anos
A antiga PNAB definia a composição da equipe de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que era uma solução transitória para a implementação da Estratégia de Saúde da Família, com um número mínimo de quatro ACS e um máximo de 12 para o atendimento de 100% da população, com até 750 pessoas por ACS. Uma das tarefas prioritárias das equipes, inclusive, era o acompanhamento de crianças em fase de desenvolvimento. A nova PNAB não tem esse compromisso. "Quando falhamos aqui, estamos falhando em vacinação", afirma Renata Pedreira.
"Estamos pagando a conta do desmonte do SUS. E isso precisa estar bem evidente para a população", argumenta a interlocutora da agência. "Na Rocinha, por exemplo, a gente viu as equipes sendo reduzidas. Não só em termos de carga horária, mas também de pessoal. Há equipes que estão atuando com 3 agentes comunitários. E elas não dão conta."
A função do agente comunitário é fazer o link entre a estratégia de Saúde para a Família e a população. São moradores da microárea das pessoas atendidas e que sabem o que acontece no território.
Sarampo: de quem é a culpa?
"Fizemos campanhas de segmento, que ampliaram a faixa etária para vacinação contra sarampo. Facilitamos a vacinação. Mas sempre tivemos alguns bolsões de população não vacinada", explica a doutora Regina.
"Onde há uma maioria vacinada se impede que o vírus afete os não vacinados. Diversos fatores, no entanto, colaboraram para relaxar a cobertura."
"Em alguns momentos faltou vacina. Em algumas áreas faltou equipamento, como geladeiras. Principalmente em áreas mais vulneráveis economicamente. Assim, crianças deixaram de ser vacinadas na região. Imigrantes entraram nessas regiões e encontraram pessoas não vacinadas, o que favoreceu o ressurgimento do sarampo no Brasil. E a maioria dos casos acontece no Norte e depois no Nordeste, onde temos algumas cidades com baixa cobertura", afirma Regina Flauzino.
A especialista também concorda que a nova PNAB contribui com a baixa cobertura vacinal. E a situação tende a se agravar após a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55, a chamada PEC do Teto de Gastos, aprovada em 2016 e que congela os investimentos em áreas sociais pelas próximas duas décadas, afetando o orçamento do Ministério da Saúde.
"A Estratégia de Saúde da Família foi um dos maiores avanços na área de atenção básica. Você tem famílias cadastradas e uma equipe que responde por um número xis de famílias. É um atendimento voltado para a promoção da saúde e prevenção de doenças. E o Agente Comunitário é a pessoa que faz o link, que faz as visitas com o médico e o enfermeiro […] que procura saber quem está vacinado ou não."
Segundo a vice-diretora do Instituto de Saúde Coletiva da UFF, "esse profissional faz um elo muito importante nesse acompanhamento, inclusive na garantia de imunização das crianças em áreas mais vulneráveis. A cobertura maior da Estratégia de Saúde da Família acontece em áreas vulneráveis. E foi um avanço muito grande para o Norte e o Nordeste, bem como para áreas mais expostas no Sul e Sudeste do país".
"Ao retirar esse profissional a gente perde. Porque ele é que acompanha muito mais de perto as famílias. Ele é que leva todo esse conhecimento e orientações, e traz as famílias para a Unidade de Atendimento, quando preciso."
A epidemiologista acrescenta que "essa proposta de reduzir os custos e congelar o financiamento prejudica muito. É mais um fator que soma para a situação de calamidade da saúde pública e o retorno de doenças que a gente tinha eliminado de circulação do país".
"Quando você limita ou impede que um profissional importante como o Agente Comunitário atue, você limita a promoção da saúde na população e contribui para essa situação que vivemos agora. Se continuar assim, tende a piorar", conclui Regina Flauzino.
O foco da campanha de vacinação está certo?
No dia 6 de agosto, o Ministério da Saúde iniciou a Campanha Nacional de Vacinação contra Sarampo. A ação mobilizou todos os postos de saúde do país e tem como alvo principal crianças de 1 a 5 anos. O dia de mobilização nacional – o dia D – acontecerá em 18 de agosto.
Em função dos surtos, no entanto, o governo convocou a campanha para aumentar a cobertura vacinal e impedir a disseminação do sarampo. E por incrível que pareça, a pressão está sendo exercida sobre os pais.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul, por exemplo, divulgou um vídeo para cobrar dos pais e responsáveis a vacinação infantil e citou as possíveis consequências legais para a negligência às recomendações de imunização. No vídeo, o órgão avisa: medidas de responsabilização dos pais por multa administrativa ou até a perda da guarda estão previstas para quem não vacinar. Outros estados seguiram o mesmo exemplo da campanha, como neste vídeo do Governo do Estado de Alagoas.
De fato, o Artigo 429 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê multa de até 20 salários mínimos aos pais ou responsáveis que descumprirem a lei. Consta no Artigo 14 a obrigação da vacinação da criança como dever inerente ao poder familiar. A punição administrativa é de responsabilização. Apesar de os relatos de aplicação da norma não serem muitos, a tendência é preocupante, pois a responsabilização legal por uma escolha contrária à vacinação não é um consenso no mundo jurídico.
Logo que surgiram as notícias sobre o retorno de doenças consideradas erradicadas no Brasil, as redes sociais ficaram repletas de memes dos usuários ironizando e muitas vezes acusando o movimento antivacina pela situação.
eu não to acreditando que a gente tá tendo que discutir sobre tomar ou não vacina 😢
— Quebrando o Tabu (@QuebrandoOTabu) 9 de julho de 2018
Série House, via Um Filme me Disse pic.twitter.com/zIUXlB06Li
Esse tema recebeu reações diferentes. Por um lado, os profissionais apontam que o movimento antivacina é irrelevante no país. Segundo a Sociedade Brasileira de Imunizações, uma pesquisa recente mostra que, na França, 41% da população desconfia das vacinas. Já no Brasil esse percentual é de 4%.
O ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, reforçou essa posição em uma entrevista ao jornal Sul21: "Essa história de que é [devido a] o Facebook que as pessoas pararam de vacinar, isso é residual, sempre teve. O que está acontecendo é o seguinte: teve vacina que faltou, teve interrupção de fornecimento de vacina, a vacina chega e a unidade básica não está mais lá, não teve mais investimento na estrutura das UBS para manter a sala de vacina."
Em segundo lugar, não há um consenso de que a opção de não vacinar de fato constitui negligência. O desembargador Siro Darlan, que foi juiz da Infância e da Juventude durante 15 anos, por exemplo, considera esse tema como algo controverso.
"Essa questão da vacinação tem sido bastante polêmica. Porque há médicos que dizem que ela é obrigatória para proteger a criança de determinadas doenças. E há outros que dizem que ela é perigosa, que causa efeitos colaterais. Então compete à autoridade paterna decidir se efetivamente aplica a vacina ou não", afirma o magistrado.
"A princípio, como é uma medida de prevenção da saúde, e a saúde é um direito fundamental das crianças e dos adolescentes, ou seja, todos devem aplicar a vacina. Mas não vejo como interferir se a decisão da mãe ou do pai, ou de ambos, for pela não aplicação da vacina, ou de outras medidas, como transfusão de sangue, em função de alguns aspectos religiosos. Essa é uma decisão que não compete ao Estado interferir. Salvo se ficar demonstrado que isso venha a causar risco pessoal ou de saúde à criança", acrescenta Siro Darlan.
É uma questão de hierarquia. A primeira que deve ser respeitada é a decisão da família, como você educa seu filho, explica Darlan. O Estado só interfere de forma supletiva quando estiver em risco algum direito fundamental da criança ou do adolescente. Dessa forma, no mínimo, segundo o juiz, é necessária uma avaliação caso a caso.
O conselheiro Isaías Bezerra, do Conselho Tutelar da Zona Sul do Rio de Janeiro, explica que o Conselho precisa denunciar os casos de negligência. Por outro lado, nem sempre é simples constatar o que é negligência e o que não é.
"O fato de um pai na Zona Sul do Rio de Janeiro não querer vacinar uma criança, seus filhos, pode ser muito diferente dos pais da Zona Oeste, ou do interior de Minas Gerais", afirma Isaías Bezerra. "As razões e as questões são diferentes. Inclusive há casos em que a criança toma vacina e fica doente. Então os pais todos da região param de vacinar os filhos por medo de os filhos ficarem doentes. Se você está na cidade do interior, todos estão vinculados a esse tipo de experiência. Então o Conselho Tutelar da região também vai ter esse entendimento. Porque não vai obrigar os pais a assumir o risco e ter problemas. Quem vai assumir essa responsabilidade?"
Ele também esclarece que normalmente o Conselho Tutelar é acionado pelo hospital ou centro de saúde quando alguém não deseja tomar vacina. O sistema de saúde, no entanto, não tem poder de polícia. E o Conselho Tutelar não tem interesse em criminalizar os pais. "A gente trabalha na base do diálogo. Não é órgão de punição", pontua Bezerra.
O conselheiro aponta para o mesmo lado que os outros especialistas: "O problema maior é o Estado brasileiro congelar por 20 anos os recursos da saúde e da assistência à população. A população continua crescendo, a situação econômica do país, em virtude do projeto político e econômico, vai levando essencialmente mais gente para a linha da pobreza e da miséria. Vai retirando suporte da assistência na saúde e, evidentemente, vamos ter problemas e mortes no país. São tragédias anunciadas. Epidemias e problemas sérios na saúde pública nos cantões e regiões mais pobres do país. Tanto na zona rural quanto na zona urbana. Com a volta de algumas doenças que já estavam erradicadas no país."
SUS do problema
"Nós precisamos saber qual a política da Venezuela e o que ela tem feito para vacinar sua população, assim como outros países", disse Occhi em teleconferência com a mídia estrangeira.
Embora a preocupação do ministério seja válida, a culpa pelo surto não pode ser transferida para a Venezuela. "Os imigrantes não são culpados, são vítimas, que não têm assistência no seu país e estão procurando ajuda aqui. E o nosso sistema é único e universal, e a gente atende de fato. Quando fiz mestrado e doutorado tivemos trabalho de vigilância em fronteiras", argumenta a sanitarista Regina Flauzino.
Ela revela que as coberturas vacinais em cidades de fronteira muitas vezes já foram de 100% e que o SUS até mesmo vacinou a população de outros países. O surto, segundo ela, aconteceu em função da queda da cobertura nessas áreas nos últimos anos.
Renata Pedreira concorda com ela. "O SUS sempre trabalhou nas áreas de fronteira vacinando pessoas que moram em outro país. Então não faz sentido. A gente sempre teve essa solidariedade dentro do SUS, de atender essas pessoas. Ou seja, dizer que o estrangeiro está trazendo uma doença é uma questão mais política, do que de saúde."
"Transfere-se a culpa do Estado para o indivíduo, para o imigrante ou para o movimento antivacina", alerta a entrevistada pela Sputnik Brasil.
A enfermeira da Estratégia de Atendimento à Família afirma que a saúde é um direito e não uma mercadoria: "Os países que têm sistema de saúde pública universal consomem mais de 8% do PIB no setor. Nós estamos muito distantes disso. O Brasil tem 3,8% para o SUS. Não dá conta."
Segundo ela, o SUS, além de outras funções, também responde pela articulação política e o planejamento de ações, que requerem verba. E a verba está ausente. Assim, ocorre uma precarização para favorecer um processo privatista para seguir a demanda do mercado.
É necessário ter uma vigilância adequada para fazer a notificação de casos suspeitos. Assim, é possível implementar uma ação para esse caso suspeito. Só que hoje a vigilância não é adequada.
"Quem faz a vigilância é o profissional da ponta, que é quem vai estar sensível às questões que surgirem e quem vai criar os indicadores para a Secretaria de Saúde analisar […] Acho que estamos falhando nisso. E fazendo análises enviesadas, porque estamos deixando de atuar onde está realmente o problema, para arrumar justificativas para a ineficácia da vigilância", conclui Renata Pedreira.
A vice-diretora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense completa o raciocínio: "De fato, é como se estivesse desviando a atenção. A responsabilidade é do governo. Quem trabalha na área percebe a falta de investimento. Não tem vacina quando você quer fazer vacinação de bloqueio. Não tem carro para fazer uma investigação e delimitar área de ação. Não tem seringa e agulha para vacinar. São pequenos detalhes que vão somando e resultam neste quadro. E isso compromete o governo. Por isso, se dá para desviar a atenção para os grupos antivacina, você desvia. Desvia a atenção para os imigrantes. Você acaba desviando a culpa, e a população quando não é bem esclarecida, acaba sentindo ódio dessas pessoas, se revoltando."