O executivo falou sobre esse e outros temas em uma entrevista exclusiva concedida à Sputnik Brasil durante a 12ª LAAD Defence & Security, mais importante feira de defesa e segurança da América Latina e que aconteceu até a última sexta-feira nos pavilhões do Riocentro, no Rio de Janeiro.
Segundo Cidade, o governo Bolsonaro está apenas no seu início e, desta forma, ainda não deu sinais claros à indústria bélica brasileira sobre eventuais linhas de fomento. Há uma expectativa, admitiu ele, em razão da grande presença de militares da ativa e da reserva no Planalto, ala essa bastante comprometida com os interesses nacionais.
"O nosso governo recém iniciou, não dá para você dizer que ele já dá sinais para um lado ou para o outro, que ele vai fazer isso ou aquilo. É um governo que está no início do quarto mês, então a avaliação que a gente tem é que um novo governo pode trazer novas perspectivas de desenvolvimento da base industrial, de retomada de alguns programas, como o espacial", disse.
Entretanto, o diretor da Avibras não deixou de reconhecer exista uma ansiedade do setor quanto aos planos do Brasil para os próximos anos – a indústria brasileira como um todo apresentou o seu pior resultado na história em 2018, respondendo por apenas 11,3% do Produto Interno Bruto (PIB) e da atividade econômica do país.
Apesar do clima de otimismo presente na LAAD 2019, Cidade revelou que, até o momento, "não vemos nenhum movimento do governo para ter programas de desenvolvimento industrial mais vigorosos em nenhuma área, também não vimos na área de defesa", pontuando ainda que não espera "algo diferenciado dentro de um programa de desenvolvimento industrial normal", algo prometido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
"É uma opção que alguém vai fazer, uma opção de se inserir mais no mercado internacional com trocas mais vigorosas e que trocas serão essas, se serão com commodities ou de produtos com maior valor agregado. Isto é uma decisão de governo que eu não sei, e que esse governo ainda não apresentou. Provavelmente eles estejam trabalhando, construindo… a gente tem expectativa que sim, que melhore, que sempre melhore, para que todo governo sempre melhore em algum momento. A gente não acha que haverá uma preferência para lá ou para cá", acrescentou.
Neste sentido, a política externa brasileira pode ter um peso para a Avibras e para as demais empresas nacionais que enxergam nas exportações a sua principal atividade. Assim, medidas como a eventual transferência da embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, algo que parece ser uma "questão de tempo", segundo o próprio Bolsonaro, poderiam impactar o mercado árabe, historicamente ávido por armamentos brasileiros, conforme a Sputnik Brasil já mostrou.
Todavia, o executivo da Avibras preferiu não entrar em polêmica, evitando falar tanto sobre países compradores da tecnologia da companhia quanto de medidas que envolvam a estratégia comercial do Itamaraty.
"Não sei se tem irritação dos árabes. Não temos uma opinião sobre a política externa brasileira, não tenho como responder isso. Não nos cabe opinar sobre isso", completou Cidade.
'Tijolos quentes' do Brasil no Iêmen: fato ou ficção?
Na gíria do Exército, chama-se de "tijolo quente" todo o artefato que apresente algum tipo de falha. Recentemente, denúncias feitas por organismos internacionais como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW) ligaram a indústria bélica brasileira à guerra civil que consome o Iêmen, no Oriente Médio, há quatro anos.
De um lado estão rebeldes houthis xiitas, apoiados pelo Irã e aliados às unidades leais ao ex-presidente Ali Abdullah Saleh, são contrários ao governo central do país. De outro está o governo local, apoiado por uma coalizão de nove países da região – Arábia Saudita, Emirados Árabes, Bahrein, Kuwait, Egito, Jordânia, Senegal, Marrocos, Sudão e Qatar.
Segundo a Anistia Internacional e a HRW, rastros das chamadas bombas de fragmentação – ou bombas cluster – lançadas pelo Sistema Astros II, fabricado pela Avibras – foram encontrados no Iêmen. Em 2015 e 2016.
Tais bombas são conhecidas, por via de regra, como uma 'arma-contêiner'. Isto significa dizer que ela leva dentro de si diversas sub-munições, como se fossem pequenas granadas. Além disso, elas podem ser lançadas por meio terrestre ou aéreo, se espalhando por uma área vasta – em alguns casos, correspondente a pelo menos quatro campos de futebol –, sem fazer distinção de alvos.
No papel, elas foram projetadas para explodir momentos antes de atingir o solo, podendo ainda ser programadas para se detonar em determinado tempo. Contudo, não só tais bombas nem sempre acabam atingindo alvos militares, como podem não explodir. Embora forças de segurança neguem, desta forma elas acabam tendo um impacto semelhante ao de minas terrestres, já que podem detonar à menor vibração.
De acordo com a organização internacional Coalizão de Munição Cluster (CMC), 98% das mortes por bombas de fragmentação no mundo vitimam civis. Diante de tamanha polêmica, o tema divide muitos países sobre a sua concepção, desenvolvimento e produção, sem anuência e ampla concordância em arenas como a das Nações Unidas (ONU).
Questionado sobre o espinhoso tema pela Sputnik Brasil, o diretor da Avibras garantiu que as acusações sobre a presença de artefatos da empresa no Iêmen foram feitas "sem evidências", explicando que imagens divulgadas por organismos internacionais que mostrariam restos de armas fabricadas no Brasil em solo iemenita "não mostram características dos nossos produtos".
"A gente vê, por exemplo, em algumas matérias que andaram aparecendo em que quando o cara mostra um acervo de artefatos que explodiram no Iêmen. A gente vê artefatos que explodiram e que não explodiram, e aí o cara vai e mostra um artefato que é parecido com o que a gente fabricou, mas é novinho. Sabe, alguma coisa tem de errado nesse negócio, porque ele é parecido com o nosso, mas o nosso tem toda uma característica que a gente pode afirmar que aquele não necessariamente é nosso", opinou Cidade.
"Aí o cara mostra 'olha, este aqui foi produzido pela Avibras' e não mostra o 'made in Brazil', não mostra o número de série, não mostra a característica dos nossos produtos. Então a gente diz, 'olha, eu não sei o que que um país pode estar usando contra o outro', é que o que nós observamos quando a gente faz a venda é o 'end user' (usuário final), a gente observa a legislação brasileira e o processo de comercialização", complementou o executivo.
A empresa brasileira reforçou mais de uma vez que segue a legislação nacional e internacional, e que possui um "programa de testes muito rigoroso", nos quais em "99,999% [dos testes] não teve resíduo no campo de batalha".
"Não sobram resíduos de 'tijolo quente', de minas terrestres… a gente o máximo de cuidado para que não sobrem resíduos. A gente tem um dispositivo de autodestruição muito eficaz, o Exército, todas as vezes que fazemos exercícios eles rastreiam e atestam a eficácia. Ele não é eletrônico como alguns países fazem, ele é pirotécnico. Mas ele funciona com uma eficácia muito grande", garantiu o diretor da empresa.
Por que o Brasil não produz um ICBM como o da Coreia do Norte?
Saindo de polêmicas, o diretor da Avibras revelou à Sputnik Brasil que foi grande o interesse ao longo da LAAD 2019 no resultado do desenvolvimento do Projeto Estratégico Astros II, voltado a "prestar um apoio de fogo de longo alcance, com elevada precisão e letalidade", segundo informações do Exército Brasileiro, parceiro da empresa na empreitada.
De acordo com Cidade, o programa que recebeu investimentos milionários do governo brasileiro já rende frutos, permitindo que o país figure hoje dentre o seleto time de nações que são capazes de criar, desenvolver e produzir mísseis de cruzeiro que sigam os padrões do Regime de Controle Tecnológico de Mísseis (MTCR, na sigla em inglês), um acordo informal de 35 países em prol da não proliferação de armamentos no planeta.
"É um sucesso. O Brasil entra em um novo patamar das nações mais desenvolvidas que conseguem produzir um míssil de cruzeiro, dentro dos padrões do MTCR, que atende tecnologicamente todas as expectativas do cliente que é o Exército Brasileiro", comentou o executivo, referindo-se ao Sistema Astros de foguetes terra-terra, capaz de lançar foguetes e mísseis de vários calibres a distâncias entre 9 km e 300 km.
O limite de distância segue o que pede o MTCR, explicou Cidade, o que também ajuda a entender os motivos pelos quais o Brasil – e por consequência a Avibras – não buscam aderir a um grupo ainda mais seleto: o dos países que possuem em seus arsenais mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs na sigla em inglês), cujo alcance mínimo é de 5.500 km.
Capazes em sua maioria de carregar armas nucleares, tais armas hoje só são parte dos armamentos dos países com assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU – Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França – e alguns poucos países, como Israel, Índia e Coreia do Norte.
Para Cidade, o Brasil até poderia se tornar dono de um míssil como esse, não fossem a falta de interesse das Forças Armadas brasileiras e da legislação nacional e internacional sobre o assunto.
"Não pode, por causa do limite do MTCR. Não faríamos isso e nem nós poderíamos produzir, nós não temos a licença para fazê-lo […]. Se trata de seguir a regra de desenvolvimento desse tipo de artefato. Mas o desenvolvimento da turbina, que é um movimento tecnológico robusto, rigoroso que a Avibras fez, nós fizemos uma turbina completa", sentenciou o executivo.
Além do Sistema Astros II, a companhia aeroespacial brasileira também trabalha em outras frentes, como no programa do Mansup, o míssil antinavio de superfície da Marinha do Brasil que integrará embarcações da Armada em um futuro próximo, recentemente testado com sucesso no país e que conta com motores produzidos pela Avibras.
Outro aspecto do presente que a empresa olha com atenção é a situação da base aeroespacial de Alcântara, no Maranhão, que foi um dos importantes temas da visita que Bolsonaro fez ao presidente dos EUA, Donald Trump, em março. A delegação brasileira trouxe na bagagem um acordo com os norte-americanos, que agora terá de ser aprovado pelo Congresso Nacional para abrir novas perspectivas e negócios no campo de lançamento de foguetes e satélites.
Para o diretor da Avibras, o novo momento de Alcântara deve movimentar um mercado concorrido de pequenos satélites, aqueles de baixa órbita, palco de disputa hoje por nada menos do que 98 empresas em todo o mundo. Geograficamente, a base brasileira possui uma vantagem sobre a de Kourou, na Guiana Francesa, e pode permitir que o Brasil não perca novamente o "bonde da história", como no passado.
Como relembrou Cidade, a base de Alcântara nunca deixou de operar, mesmo após a tragédia de 22 de agosto de 2003, quando a explosão do foguete brasileiro VLS-1 V03 – que tinha o objetivo de colocar em órbita o microssatélite meteorológico SATEC do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e o nanosatélite UNOSAT da Universidade do Norte do Paraná (Unioeste) – matou 21 técnicos civis; ou após o fracassado acordo com a Ucrânia.
"Posso dizer que a base sempre continuou funcionando. A gente produz os foguetes de treinamento de maneira permanente. O que houve foi um certo gap entre o problema com aquele VLS, infelizmente, e a atual fase do novo programa espacial com uma retomada do Brasil no espaço que a gente acha saudável. Há um mercado mundial crescendo, o Brasil tem uma base bem localizada geograficamente, tem uma indústria a aeroespacial vigorosa que faz veículos lançadores, motores para veículos lançadores, quanto satélites. Temos alguns ICTs (Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação), nós já estamos no terceiro satélite, nanosatélite, então isso é importante", avaliou.
Ainda segundo o diretor da Avibras, o país precisa evitar hoje o que aconteceu no período da privatização da Embratel, em 1998 durante o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), quando o Brasil liderava uma posição estratégica na Organização Internacional de Telecomunicações por Satélite (Intelsat).
"Há alguns anos atrás, no início do boom das telecomunicações do Brasil, alguns países vinham visitar o Brasil para ver como estava o programa de gestão daqueles satélites que eles tinham no consórcio Intelsat. Hoje alguns desses países estão dentre os maiores lançadores de artefatos pelo mundo. O Brasil perdeu, em determinado momento, o gancho da história para entrar nesse mercado espacial. Sabe-se que o consórcio Intelsat se desmanchou, o Brasil saiu e depois vendemos os satélites para a privatização da Embratel, que foi com os satélites", concluiu.