Na noite de 2 de setembro de 2018, bastaram poucas horas para o fogo apagar mais de dois séculos de história brasileira. Mais antiga instituição científica do país, a recuperação do acervo e do Palácio de São Cristóvão, que abrigou no passado a família real, é uma jornada de desafios. Por enquanto, as palavras de ordem são paciência e esforço para cumprir os objetivos traçados.
De acordo com o diretor da instituição, Alexander Kellner, é difícil falar de datas concretas.
"Enquanto não finalizarmos os projetos, fazemos estimativas. Mas temos metas. A primeira que queremos alcançar é de que em 2022, ano do Bicentenário da Independência, a gente consiga abrir parte do museu para a população. É uma meta que pode ser alcançada, basta boa vontade e coordenação", afirma o paleontólogo para a Sputnik Brasil.
A nova reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Pires de Carvalho, primeira mulher a assumir o cargo, no dia 8 de julho, disse em coletiva de imprensa que o objetivo de sua gestão é reabrir pelo menos uma ala do Palácio até 7 de setembro.
Os projetos a que Kellner se refere são os estudos para a restauração da fachada e do telhado do edifício localizado na Quinta da Boa Vista; a reconstrução da área interna do museu; e os anteprojetos de novas exposições.
"As pessoas não têm um entendimento completo do que acontece. Os projetos que precisam ser feitos estão em andamento, mas apenas quando concluídos, teremos uma ideia melhor de tempo e custo. Não adianta sair contratando empreiteira", diz Kellner.
Arrecadações muito abaixo do orçamento mínimo
Entre tanta incerteza, esperança. De acordo com o diretor, os danos à estrutura do edifício, datado do início do século 19, foram menores do que o imaginado. A reconstrução da fachada e do telhado deve começar neste ano.
"O museu teve danos estruturais, mas não irremediáveis", afirma.
Até o momento, têm se trabalhado com o valor aproximado de R$ 300 milhões para recuperar o museu. O diretor da instituição ressalta que esse número também é uma estimativa.
"Tem gente que avaliou em R$ 150 milhões, só vamos saber quando os projetos estiverem concluídos, o que deve acontecer até meados do ano que vem", diz o paleontólogo.
O dinheiro arrecadado até agora, no entanto, não atingiu nem mesmo essa previsão de orçamento mais enxuto. A maior parte foi enviada pelo governo alemão, que já destinou aproximadamente R$ 1,4 milhão para a Associação Amigos do Museu Nacional (SAMN), que gerencia as contribuições. O governo da Alemanha prometeu mais R$ 4 milhões. Ao todo, a SAMN recebeu cerca de R$ 3,2 milhões, incluindo outros doadores internacionais e nacionais.
Ao contrário da Europa, política de doações dificulta captação no Brasil
Kellner agradece a campanha de arrecadação.
"Recebemos R$ 380 mil de pessoas físicas. Contamos com apoio, mas quando comparamos com doações na Europa, é diferente. Mesmo assim agradecemos o esforço das pessoas, mais de 3 mil fizeram doações" diz o diretor.
Quando se fala no Velho Continente, o que vem à mente é o desastre na Catedral de Notre-Dame, em Paris. Ocorrido no dia 14 de abril de 2019, a tragédia comoveu o mundo. E mobilizou os bolsos: em apenas dois dias, foram arrecadados R$ 3,76 bilhões para reconstruir o monumento.
"Quando se faz comparações com doações para Notre-Dame, as pessoas se esquecem que lá o doador deixa de pagar imposto para fazer isso. A conta não é exata assim, mas é uma linha de ação bem elaborada por governos na Europa e nos Estados Unidos, que nós talvez pudéssemos adotar. Enquanto isso não acontecer, não imagino ver doações vultuosas aqui", lamenta Kellner.
A instituição brasileira ainda conta com R$ 80,8 milhões do governo, mas a maior parte do dinheiro não chegou. O Ministério da Educação (MEC) já liberou R$ 16 milhões. Mais R$ 21 milhões virão de um contrato com o BNDES assinado antes do incêndio. Há ainda R$ 43 milhões destinados por uma emenda parlamentar da bancada do Rio à espera.
Pesquisadora culpa falta de investimentos dos governos
Para Kátia de Marco, presidente da ONG Associação Brasileira de Gestão Cultural, a dificuldade para captar recursos dos setores públicos para investimento em patrimônio é reflexo da crise econômica.
"O orçamento anual do Museu, de 2013 para 2018, caiu de R$ 531 mil para R$ 54 mil. Não é possível uma instituição que teve recursos reduzidos tão drasticamente conseguir seguir protocolos de excelência para preservar acervos", afirma ela para a Sputnik Brasil.
De acordo com perícia da Polícia Federal, o incêndio começou devido a uma sobrecarga num aparelho de ar condicionado instalado no auditório. Contribuiu para o fogo uma gambiarra na fiação. As investigações estão em fase de conclusão e ainda não apontaram culpados.
"A rede elétrica é o calcanhar de Aquiles dos museus, muitas vezes prédios antigos, sem estruturas atualizadas. Há exemplos de outros incêndios causados pela deficiência na manutenção delas", diz a pesquisadora.
Ações de prevenção podem ser simples e não custar caro
Segundo Kátia, é preciso investimento para prevenção, detecção e combate ao fogo e situações como inundações e umidade.
"Os governos são responsáveis por essa falta de prioridade. A gente vê isso por diversas instituições no Brasil. Dos quase 4 mil museus cadastrados no país, a maioria sofre com problemas relacionados à manutenção de suas estruturas", critica.
Apesar disso, a pesquisadora considera que algumas ações de prevenção são simples e econômicas.
"Existem protocolos de rotina que não custam muito, como o treinamento contínuo, a vigilância cotidiana da rede elétrica. Há uma cartilha do Instituto Brasileiro de Museus (Ibran) sobre segurança. Coisas básicas, como conferência de extintores, evitar materiais inflamáveis", explica.
Com doações até do Ibama, aos poucos parte de acervo vai sendo recuperado
As imagens do fogo ardendo no Museu causaram comoção nos brasileiros. A doutoranda em Museologia Kátia resume o sentimento diante da tragédia:
"A história do Brasil agora tem um apagão. Um vazio enorme".
Os danos foram gigantescos. Metade das coleções viraram cinzas. A de entomologia foi praticamente dizimada – o que significa 12 milhões de exemplares. Em termos de acervo total, 80% foi afetado, o que não significa necessariamente ter sido perdido.
Embora parte da história tenha virado cinzas, o diretor da instituição olha para frente e comemora doações de peças.
— EBC Na Rede (@ebcnarede) September 1, 2019
"Recuperamos ao máximo o material sob os escombros. Ainda estamos terminando essa fase. Retirar e colocar em segurança. A fase de catalogação, de inventário, vai demorar um pouco. Só depois que tirarmos tudo teremos tempo para avaliar as peças, o ponto mais demorado. Ao final recuperamos mais material do que prevíamos", afirma Kellner.
Muitas doações são feitas por particulares, instituições e órgãos de governo. Algumas são peculiares. Minerais, animais mortos e outros artefatos estão vindo de apreensões do Ibama e da Polícia Federal. Além disso, a direção do Museu já recuperou 15 mil volumes de obras doadas para restaurar a Biblioteca Francisca Keller. A previsão é de que 90% dela seja reposta.
Um alento vem do quintal do próprio Palácio de São Cristóvão. Um tesouro arqueológico de mais de 30 mil peças foi encontrado durante obras de modernização do Zoológico do Rio de Janeiro, localizado na Quinta da Boa Vista. A maior parte desses objetos serão destinados ao Museu Nacional.
Muitos itens remontam ao período no qual havia no local uma vila de funcionários do Palácio Imperial. Mas também foram encontrados vestígios de um antigo quartel, construído após a Proclamação da República. São objetos do cotidiano, como louças, xícaras, pratos, talheres, ferraduras e botões de roupas com o brasão imperial.
Os arqueólogos acreditam que muitas peças foram dadas por pessoas do próprio Palácio para os moradores do entorno. Ou seja, mais de 100 anos após de sair de casa, esse pequeno conjunto de itens retornará ao lar, ajudando a aliviar as dores de uma tragédia que talvez nunca cicatrize.
Ao final, a esperança dos especialistas é de que a tragédia no Palácio de São Cristóvão sirva como lição para aumentar a eficiência dos gestores culturais e conscientizar a população sobre história.
"Em vez de Fulano sai na padaria, por que não Fulano entrou num museu?"
Para Nélson Colás, gerente-geral da Federação de Amigos de Museus do Brasil (Feambra), tragédias como as do Museu Nacional sensibilizam as pessoas sobre o valor dessas instituições.
"O numero de visitantes tem aumentado gradativamente, dados do Ibran mostram aumento constantes nos últimos 4 anos, de 20% em média. Mas dependemos de divulgação. A gente sabe que muitas pessoas ainda têm medo de entrar nos museus, pois não sabem o que vão encontrar. O que não podemos é deixar de falar deles. Brinco que os sites de notícias anunciam atualmente: 'Fulano sai da padaria'. Poderia mudar para 'Fulano foi visto entrando num museu'", diz Colás para a Sputnik Brasil.