Especialistas russos do Conselho Russo de Assuntos Internacionais (RCIA, na sigla em inglês) se reuniram na Biblioteca Dostoievski em Moscou para discutir as principais tendências do terrorismo global para a década de 2020.
O fenômeno, que entrou na ordem do dia dos países ocidentais em 2001, quando o então presidente dos EUA, George W. Bush, declarou a chamada "guerra contra o terror", deve ser uma das principais ameaças à segurança internacional na década que se inicia.
Apesar disso, de acordo com a base de dados Global Terrorism Database, o número anual de ataques terroristas realizados em todo o mundo apresenta tendência de queda, principalmente após a derrota do "califado" do Daesh (organização terrorista proibida na Rússia e demais países). Em 2014, 18 mil ataques terroristas foram cometidos em todo o mundo, contra 10 mil em 2018, representando uma queda de 55%.
Além disso, 60% dos ataques estão concentrados em somente cinco países: Afeganistão, Iraque, Nigéria, Síria e Paquistão. Todos esses países enfrentam conflitos armados internos dos quais participam grupos terroristas.
Terrorismo islâmico
De acordo com o docente do Instituto de Relações Internacionais de Moscou (MGIMO, na sigla em russo) Sergei Veselovsky, o chamado "terrorismo islâmico" deve continuar como a principal vertente do terrorismo na próxima década. O docente lembra, no entanto, que apesar do nome não se trata de um fenômeno religioso, mas sim "estritamente político".
No entanto, algumas mudanças fundamentais devem ocorrer. Após a queda do "califado" do Daesh, as atividades terroristas devem se fragmentar em diversos grupos, dispersos geograficamente.
A volta de ex-combatentes estrangeiros aos seus países de origem deve acentuar essa fragmentação. A Tunísia é o país que recebeu mais ex-combatentes, que muitas vezes são pessoas treinadas, com capacidade técnica para perpetrar atentados, seguido por Arábia Saudita, Jordânia, Rússia e França.
Veselovsky não excluiu a possibilidade da criação de um novo "califado" na década de 2020. A localização exata pode ser bastante variada: os terroristas poderiam optar pela região montanhosa do Paquistão, pela Nigéria, ou até mesmo por uma ilha na Indonésia.
Terrorismo nacionalista
Um fenômeno em ascensão na próxima década deverá ser o terrorismo "nacionalista", isto é, ataques terroristas conduzidos contra grupos étnicos, migrantes ou grupos religiosos minoritários. Essa vertente do terrorismo voltou à ordem do dia com os ataques perpetrados por Anders Breivik em 2011, que assassinou 77 pessoas na Noruega em nome da alegada defesa da civilização europeia.
Conforme se intensificam os fluxos migratórios globais, gerados por fatores como conflitos armados, pobreza e mudanças climáticas, casos como o do ataque terrorista motivado pela islamofobia contra uma mesquita na Nova Zelândia, que vitimou 51 pessoas, devem tornar-se cada vez mais frequentes.
Retorno da esquerda e do separatismo
O terrorismo de extrema esquerda deve se tornar mais influente na próxima década. O Global Terrorism Database destaca o nível elevado de ataques terroristas cometidos pelo Partido Comunista Maoísta na Índia e pelo seu análogo nas Filipinas.
A professora de Ciências Sociais da Escola Superior de Economia de Moscou Sofia Ragozina acredita que a degradação econômica é uma das causas do terrorismo global:
"O terrorismo é um fenômeno ligado a […] fatores econômico-sociais, como a baixa qualidade de vida e o desemprego", disse Ragozina à Sputnik Brasil.
De acordo com Veselovsky, caso se confirmem os prognósticos negativos para a economia global na próxima década, esses atentados devem voltar à ordem do dia.
Outra forma de terrorismo que deve retornar é o terrorismo separatista, após um período de relativa estabilidade, principalmente após a renúncia ao terrorismo por parte do grupo basco ETA, que lutava para tornar o País Basco independente da Espanha.
Caso particularmente preocupante é o da Irlanda do Norte. Após anos de paz, as tensões voltam à região em função dos desdobramentos da saída do Reino Unido da União Europeia. Nesse sentido, os desenvolvimentos do processo do Brexit devem ser fundamentais para manter baixos os níveis de terrorismo separatista no Ocidente.
Situação na América Latina
Ragozina lembra que não há uma definição clara para o termo "terrorismo" e que, por isso, ele deve ser cada vez mais empregado para classificar grupos armados de diversas naturezas. Essa seria "uma forma bastante eficaz de legitimar quaisquer ações contra grupos classificados como 'terroristas'".
Em novembro de 2019, o presidente dos EUA, Donald Trump, declarou que os EUA têm a intenção de classificar os grupos narcotraficantes do México como "organizações terroristas".
"Uma vez que não existe nenhuma definição clara de terrorismo, Trump simplesmente quer dizer que se trata de criminosos do mais alto grau. Isso é uma tendência do uso da palavra 'terrorismo' para significar simplesmente 'o pior ser humano na terra'", explicou Veselovsky à Sputnik Brasil.
Para o professor, os termos já empregados para qualificar os cartéis mexicanos, como "narcoterrorismo", são impróprios, uma vez que não há objetivo político no tráfico de drogas, que "visa exclusivamente o lucro".
A tendência de classificar todas as ameaças à segurança do Estado como "terrorismo", para facilitar a adoção de medidas consideradas excepcionais, é mais uma tendência da década que se anuncia.