Tudo começou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pelo PSOL em 2016, na qual são contestadas cláusulas de convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e de um Decreto-Lei do Poder Executivo, que garantem, respectivamente, redução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) em 60% e isentam do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) alguns tipos de agrotóxicos.
Segundo a legenda, esses produtos são prejudiciais à saúde e ao meio ambiente e não podem receber benefícios fiscais. A ação comparara os agrotóxicos a cigarros, que têm taxação extra pois geram custos ao sistema público de saúde e à Previdência.
A justificativa legal para a "bolsa agrotóxico" é que os defensivos agrícolas são essenciais para o desenvolvimento do país, pois seriam necessários para garantir a produção de alimentos para toda a população e a preços acessíveis.
O Supremo Tirbunal julgaria a ADI na quarta-feira (20), mas a análise do tema foi adiada e ainda não tem data para ocorrer.
Estudo indicou que isenções somam R$ 10 bi por ano
Segundo estudo produzido pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), as isenções somam por ano cerca de R$ 10 bilhões, valor que deixa de entrar para os cofres públicos na forma de impostos.
O montante é quatro vezes maior do que orçamento de 2020 do Ministério do Meio Ambiente (R$ 2,7 bilhões), e mais que o dobro do que o SUS gastou em 2017 para tratar pacientes com câncer (R$ 4,7 bilhões).
Para Marcelo Firpo, pesquisador da Abrasco e da Fiocruz, e um dos autores da pesquisa, a justificativa para as desonerações "não tem base empírica" e os incentivos "só foram obtidos pelo poderio do agronegócio que existia no Brasil desde a década de 90".
'Agrotóxicos nasceram como arma química'
"Os agrotóxicos, diferente de tratores e enxadas, são perigosos e promovem mal à saúde e ao meio ambiente. Eles nascem na Primeira Guerra mundial como arma química, e posteriormente se transformam. Até então não havia agrotóxicos na agricultura mundial. Eles podem eventualmente ser utilizados, com cuidado, em situações particulares, que devem ser acompanhadas", disse à Sputnik Brasil.
A Abrasco e a Fiocruz, ao lado de outras entidades, participam do julgamento como amicus curiae, expressão utilizada para designar uma instituição que fornece subsídios para embasar decisões de um tribunal.
"Pesquisas mostram a relevância de intoxicações agudas causadas pelos agrotóxicos no campo e vários tipos de câncer associados a eles", afirmou o pesquisador.
Estudo do qual Firpo é coautor, publicado na revista Saúde Pública, aponta que para cada dólar utilizado na compra de agrotóxicos, são gastos US$ 1,28 no tratamento de intoxicações agudas, que ocorrem imediatamente após a aplicação dos agrotóxicos.
No outro lado do julgamento estão organizações como a Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja), Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg) e Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Elas não utilizam o termo agrotóxicos, mas sim "defensivos agrícolas".
Fim das desonerações não impactaria preços dos alimentos
Segundo o pesquisador da Abrasco, as isenções fiscais não fazem os alimentos chegarem mais baratos à mesa do brasileiro e nem aumentam sua produção.
"Oitenta e cinco por cento dos agrotóxicos são usados em culturas de commodities, como soja, milho, cana-de-açúcar, algodão. Eles não têm os preços influenciados pelo custo dos agrotóxicos, seu valor é formado pela bolsa de mercados internacionais", sustentou Firpo.
Para ele, só haveria algum impacto no preço de poucas culturas, como legumes e hortaliças, "mesmo assim não mais do que cinco a oito por cento", e que "são facilmente convertidas para o orgânico ou agroecológico".
CNA diz que fim dos benefícios aumentaria inflação
A Confederação da Agricultura e Pecuária discorda. Para a entidade, "os riscos de uma revogação dos benefícios tributários serão custeados pelos produtores rurais, por meio da queda em sua rentabilidade, e pela população, com o consecutivo aumento da cesta básica, e, por fim, por toda a sociedade brasileira, que sentirá os reflexos nos índices de inflação", disse a entidade por meio de nota enviada para a Sputnik Brasil.
De acordo com a CNA, o fim das isenções aumentaria em 9,5% a inflação e faria com que o gasto médio do trabalhador brasileiro com a cesta básica aumentasse de 46,4% para 50,8% do salário mínimo.
A CNA disse ainda que o "uso de defensivos agrícolas é uma prática comum no mundo inteiro para proteger as lavouras das pragas e das plantas daninhas". Além disso, afirmou que os alimentos no Brasil são comprovadamente "seguros".
Para Luiz Otávio Pires Leal, veterinário e editor do site da Sociedade Nacional de Agricultura, os produtos químicos devem ser usados com a técnica correta para que não prejudiquem aplicadores e consumidores.
'Necessidade absoluta'
"A aplicação correta é uma necessidade absoluta para aumentar a produtividade agrícola e evitar a fome, enquanto a produção denominada orgânica, sem uso dos produtos químicos, ainda é um sonho, só viável para os consumidores que podem pagar mais", disse à Sputnik Brasil.
As organizações que defendem a inconstitucionalidade das desonerações criticam os benefícios concedidos pelo governo ao agronegócio e às empresas de agrotóxicos – não só na forma de isenções, mas também em relação à destinação de recursos públicos.
Dados da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida indicam que o orçamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), atualmente sob controle do Ministério da Cidadania, vem caindo. Em 2020, o valor destinado ao projeto, que compra alimentos de agricultores familiares e distribui para a população carente, será de R$ 101 milhões – enquanto em 2012 foi de R$ 1,2 bilhão.
"O governo investe muito mais no agronegócio químico dependente do que nas possibilidades de uma alimentação saudável. Os alimentos poderiam ser desonerados diretamente, e não uma substância altamente perigosa. As isenções aumentam a lucratividade de setores poderosos da sociedade e, ao mesmo tempo, deixa-se de investir em uma agricultura mais sustentável", disse Firpo.
A CNA, por sua vez, argumentou que "dos estabelecimentos rurais que declaram utilizar defensivos, 48,2% são de até cinco hectares, ou seja, os maiores prejudicados em caso de aumento tributário serão os pequenos produtores rurais".
Modelo agrário errado
Segundo Firpo, o modelo agrário brasileiro está errado.
"Plantações intensivas e de grandes extensões, verdadeiras fazendas que são oceanos de soja, sem nenhuma biodiversidade, o que requer o alto uso de agrotóxicos", disse.
A outra possibilidade seria "reduzir o tamanho das áreas cultiváveis, combinando elas com biodiversidade, formas mais ecológicas e orgânicas", como por exemplo os sistemas agroflorestais, que, segundo pesquisadores, recuperam áreas degradadas e evitam a expansão da fronteira agrícola, aliando sustentabilidade e bom desempenho.