'Se eu tivesse um ambiente bom, uma conversa boa, eu não teria engravidado'
Letícia Nascimento é uma jovem negra de 18 anos que engravidou aos 16 enquanto morava na Cidade de Deus, favela do Rio de Janeiro. A jovem afirma que a falta de educação sexual foi crucial para sua gravidez ainda na adolescência e não acredita que a promoção da abstinência vá funcionar.
"Acho que se tivesse mais abordagem dentro da escola, talvez, ajudaria muito. E acho que não tem como o jovem se abster do sexo, é o que acontece, acho que isso [a abstinência] não vai rolar", afirma em entrevista à Sputnik Brasil.
A abstinência sexual ou o retardo do início da vida sexual, proposta indiretamente na campanha "Tudo Tem Seu Tempo", do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), tem sido alvo de severas críticas. Isso porque introduz uma visão mais próxima de valores religiosos cristãos ao lado de práticas consagradas, como o incentivo ao uso de métodos contraceptivos através da ênfase na educação sexual.
A influência de campanhas políticas internacionais dos Estados Unidos também é notória e demonstra outra frente de alinhamento do Brasil do presidente Jair Bolsonaro com o conservadorismo republicano de Washington.
A campanha publicitária fará parte do "Plano Nacional de Prevenção à Iniciação Sexual Precoce" e terá como ponto de partida três cidades das regiões Norte e Nordeste. De lá, a campanha avançará para o resto do país.
O caso de Letícia confirma vários fatores de risco citados por especialistas e ativistas sobre a gravidez precoce. Oriunda de lar pobre que deixou aos 15 anos, Letícia nunca conheceu o pai e sua mãe tem histórico de abuso de substâncias. A jovem também não conseguiu dar continuidade aos estudos pois a escola não tinha estrutura para que ela pudesse seguir estudando enquanto cuidava da criança.
"Eu parei no segundo ano do [ensino] médio porque não tinha como levar meu filho. Era eu e o pai e não tinha como levar ele. Quando eu voltei para estudar me disseram que não podia", conta.
Sem espaço para diálogo dentro de casa, sua mãe sequer sabia que ela tinha uma vida sexualmente ativa antes de sua gravidez. Letícia conta ainda que seu caso não é raro onde vivia e teve mais de uma amiga moradora da região que também engravidou na adolescência.
"Eu tinha uma amiga que engravidou com 15 anos. Eu super apoiei, eu não sabia o que ela estava passando mas não ia abandonar. E quando eu engravidei, e eu não imaginava que ia engravidar, ela me apoiou também", lembra.
Uma rede de apoio em meio ao deserto de informação
Quem conhece essa realidade de perto é a psicóloga Ingrid Siss, que se formou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e passou a trabalhar com casos de gravidez precoce também na Cidade de Deus. A psicóloga fundou há três anos a Casa Dona Amélia, onde atende jovens grávidas e pobres da favela.
"A gente está falando sobre meninas em situação de vulnerabilidade [...]. Se você não tem muito suporte, é fundamental que você tenha pelo menos uma rede com que você possa contar e um local que seja acolhedor em que você possa partilhar tudo aquilo que está acontecendo naquele momento", explica a psicóloga em entrevista à Sputnik Brasil.
Foi através do projeto de Ingrid que Letícia buscou apoio quando engravidou. Hoje, a jovem trabalha junto com a psicóloga Ingrid Siss na Cidade de Deus e ajuda a coordenar o trabalho de apoio a outras jovens que também engravidaram de forma precoce. Ela ressalta que a rede que encontrou na Casa Dona Amélia foi fundamental para que ela recuperasse sua autoestima.
"Durante a minha gravidez eu acreditava que o mundo ia acabar, que eu não ia conseguir fazer nada. Eu perdi muitas oportunidades, mas minha vida não acabou. E através do Ezequiel [seu filho] eu tive outras oportunidades", aponta.
Através de sua rede de apoio, Letícia conseguiu seguir em frente mesmo com o estigma por ter engravidado cedo.
"A vida não acaba só porque eu tive um filho. A sociedade olha - ainda mais se eu não tiver com o pai - como se eu não fosse nada. 'Olha lá, engravidou nova, não é casada, perdeu a vida', e não é isso", afirma a jovem.
A psicóloga Ingrid Siss aponta que as meninas que atende têm dificuldades financeiras, mas que o foco de seu trabalho é no apoio psicológico para que elas não desistam de sonhos e não repitam ciclos familiares problemáticos. Isso porque, relata Ingrid, muitas das jovens que atende buscam na gravidez uma forma de fugir de lares desestruturados.
"Elas querem ter o filho porque elas querem formar uma família. Pode parecer muito absurdo para a nossa realidade, mas assim, [imagine que] eu venho de uma família muito descontrolada, minha mãe não é muito boa comigo, meu pai sumiu e tal, então quando eu tenho um filho, eu tenho uma oportunidade de recriar isso, de recriar o meu momento familiar”, conta a psicóloga, que classifica a situação como “uma ilusão".
Segundo estudo do UNICEF e da Organização Mundial da Saúde (OMS), a gravidez precoce, entre 15 e 19 anos, tem diminuído no Brasil nas últimas décadas e é, segundo dados de 2014, de 60,5 grávidas para cada 1.000 mulheres. Apesar da diminuição, o número é mais alto que a média mundial, que é de 46. O jornal Folha de São Paulo, no entanto, aponta que houve aumento da gravidez precoce nas periferias da capital paulista.
A UNICEF também lista quatro macro fatores que influenciam a gravidez precoce: violência sexual, descompasso entre desejo sexual e risco de gravidez, necessidade de mudança de status social e vontade pela maternidade.
Letícia acredita que seu ambiente familiar, aliado à falta de educação sexual, influenciou sua gravidez precoce e recorda que deixou de morar com a mãe aos 15 anos devido a essa situação, indo morar com o futuro pai de seu filho.
"Se eu tivesse apoio da minha mãe, se eu tivesse uma casa boa, um ambiente bom, uma conversa boa, eu não teria engravidado", afirma.
Incluindo a vontade de formar uma família melhor para si, essas jovens de periferia, aponta a psicóloga fundadora da Casa Dona Amélia, também convivem com falta de informações básicas sobre métodos contraceptivos e o funcionamento dos próprios corpos.
"A gente ainda tem meninas que acreditam que na primeira transa você não engravida, que se gozar fora não vai engravidar também. [Elas] não têm informação sobre o próprio corpo. Isso é uma questão muito, muito séria", relata Ingrid.
Letícia explica que a falta de informação fez com que ela tivesse as primeiras relações sexuais sem as informações necessárias e que que isso foi um fator importante para sua gravidez ainda adolescente.
"Quando eu tive a minha primeira relação eu me deixei levar, eu não usei nenhum preservativo. Se tivessem trabalhado a minha mente, e de outras meninas, seria diferente. 'Ah, porque você tem que usar preservativo, se não quiser você não faz, não tem essa de vai ser uma rapidinha, você não vai engravidar'. Se eu tivesse tido esse tipo de conversa eu não teria deixado", lamenta.
Política e religião na cruzada contra o sexo
A campanha do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos que ganhou fama através do foco na abstinência sexual, apesar dos problemas técnicos, teria motivos também políticos e religiosos. É como avalia a questão o cientista político Cláudio Couto, professor da FGV de São Paulo, que elenca dois aspectos sobre o problema.
"Eu creio que existem duas coisas aí e uma é, claramente, de agradar um certo setor da sociedade brasileira, que é um setor junto ao qual o bolsonarismo tem um apoio maior, que é dos conservadores religiosos que têm uma perspectiva bastante conservadora, em especial na [questão da] sexualidade", explica Couto em entrevista à Sputnik Brasil, acrescentando que o grupo busca aliar essa visão particular religiosa a uma política de Estado.
A nota técnica do Ministério que embasou a campanha falava nesse sentido, dizendo que a vida sexual precoce leva a "comportamentos antissociais ou delinquentes" e ao "afastamento dos pais, escola e fé".
Como segundo aspecto, o cientista avalia que a contradição da campanha com pesquisas científicas seja também um padrão do atual governo que, segundo Couto, tem tido uma postura contrária à Ciência.
"Nós temos um governo que não trabalha com evidências como algo relevante para políticas públicas, muito pelo contrário. É um governo que, na verdade, tem uma postura anti-intelectualista, anticientífica", ressalta.
Voltando à nota do Ministério, o texto chegou a apontar que o ensino de métodos contraceptivos "normaliza o sexo adolescente". A Sputnik Brasil enviou perguntas para a pasta sobre a campanha, mas não recebeu respostas até o fechamento desta matéria*.
Para o cientista político essa é uma das características do governo que permite classificá-lo como reacionário.
"O reacionário é aquele que quer regredir no tempo, voltar a um estado de coisas anterior. Seja um estado de coisas real ou muitas vezes um estado de coisas anterior idealizado, mistificado, que sequer existiu objetivamente [...]. Voltar atrás na questão da liberdade sexual é voltar atrás praticamente aos anos 1950", aponta.
Couto lembra também que a aspiração religiosa do governo traz ideias dos conservadores religiosos dos EUA neste campo, parte de um processo de aproximação posto em marcha pelo presidente Bolsonaro.
Brasil já disse não aos EUA por exigências que incluíam a abstinência sexual
O Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde no Brasil é considerado um modelo mundo afora devido ao seu sucesso e foco na educação sexual e distribuição de preservativos. Um de seus criadores foi o médico e sanitarista Pedro Chequer, que também prestou serviços à Organização das Nações Unidas (ONU) e é um dos nomes mais respeitados do mundo na área.
À época, em 2004, o Brasil foi abordado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) para firmar parceria e financiamento. No entanto, as condições impostas pela agência não agradaram o programa brasileiro. Entre as exigências estava a ênfase em campanhas de abstinência sexual.
A iniciativa dos EUA que foi levada a outros países teve seu pico através do Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Alívio da AIDS (PEPFAR), criado em 2003 durante a gestão do ex-presidente dos EUA, George W. Bush, e elogiado pelo sucesso na distribuição de antirretrovirais, mas também criticado pela campanha pró-abstinência.
Pedro Chequer, em entrevista à Sputnik Brasil, afirma que a abstinência pode até ser um método eficaz, porém não funciona enquanto política pública.
"Do ponto de vista prático não é uma proposta factível enquanto política pública em qualquer país do mundo. Por 15 anos o governo americano, por intermédio do PEPFAR, investiu cerca de 1,5 bilhão de dólares em 14 países do sub-saara africano promovendo abstinência como método de prevenção do HIV e não obteve resultados significativamente diferentes quando comparados com aqueles países que não receberam fundos para implementar essa agenda", explica o médico.
O ex-chefe do Programa Nacional de DST/AIDS explica que a ineficiência do método como política pública é comprovada cientificamente. Essa posição sobre a abstinência foi um dos fatores que fez o Brasil negar parceria com os EUA à época.
"A recusa do Programa de AIDS em aceitar a parceria e o repasse de 40 milhões de dólares não esteve relacionada apenas à proposta de se incluir a abstinência no elenco de atividades. Postergar a primeira relação sexual é parte das recomendações do UNAIDS como um dos pilares da prevenção do HIV, não isoladamente, mas com um item entre tantos outros. Todavia a ênfase deve ser dada à utilização sistemática do preservativo", detalha.
Chequer explica que "o que foi decisivo na recusa da parceria foi a exigência explícita de que o Programa não poderia financiar projetos ou instituições que apoiassem atividades com prostitutas", grupo extremamente vulnerável ao risco de infectar-se e que era parceiro na formulação de políticas para a implementação de ações, considerado imprescindível “para o sucesso das atividades preconizadas como política oficial”.
Para Chequer, essa postura do PEPFAR era radical e anticientífica, derivada de pressões de segmentos religiosos do Congresso dos EUA que nutrem desprezo pela evidência científica e optam por priorizar aspectos relacionados ao fundamentalismo religioso.
Em relação à campanha "Tudo Tem Seu Tempo", Chequer reitera que o método da abstinência é cientificamente aceito, desde que não seja o centro da proposta.
"A redução da gravidez em adolescentes é importante aspecto a ser perseguido enquanto política pública uma vez que há estudos demonstrando consequências adversas para a mulher, como por exemplo, entre vários aspectos, a interrupção da frequência à escola e suas consequências para a graduação. Programas de educação sexual equilibrados e realistas podem incentivar adolescentes a adiar o sexo até a idade mais avançada, mas ao mesmo tempo devem promover práticas sexuais mais seguras para os que optam por se tornarem sexualmente ativos", explica o médico que reitera a necessidade da ênfase no uso do preservativo para evitar a transmissão de doenças.
"Educação sexual nas escolas, em tempo oportuno e utilizando metodologias apropriadas que dialoguem com o adolescente, é essencial para que se alcance o cenário desejado. Alguns, equivocadamente, entendem que cabe apenas à família essa atividade, todavia, ao mesmo tempo temos uma legislação que permite o ensino religioso nas escolas e custeada pelo contribuinte. Não seria também função exclusiva da família num Estado teoricamente laico?", provoca o médico.
Campanha pode aumentar gravidez precoce e violência sexual
A pesquisadora Heloisa Buarque de Almeida, antropóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP), critica frontalmente as bases científicas da campanha do MMFDH. A coordenadora do comitê de Gênero e Sexualidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) afirma que esse tipo de campanha pode agravar o problema e tende a "funcionar como uma campanha de desinformação".
"Quando a campanha é só pela abstinência, ao invés de uma campanha de prevenção, ao invés de uma campanha de educação sexual, o que tende a acontecer é aumentar a gravidez precoce, aumentar gravidez de adolescente pela falta de informação da prevenção", alerta a pesquisadora em entrevista à Sputnik Brasil.
A professora avalia que essa não é uma ação isolada dentro do governo e aponta que há um movimento por parte da ministra Damares Alves que busca diminuir a discussão sobre gênero dentro das escolas.
A pesquisadora alerta também para o fato de que o formato da campanha tende a responsabilizar a mulher pela prevenção da gravidez, reforçando estigmas e atacando direitos humanos.
"A gente vê, por exemplo, que não só a gente responsabiliza as mulheres pela gravidez como também pela criação do filho. É muito comum que as meninas que engravidam muito jovens, por exemplo, tenham que parar de estudar, mas os meninos não necessariamente. O pai da criança continua a sua vida normalmente", ressalta.
Outro risco que a campanha pode trazer está relacionado à violência sexual, uma vez que a falta de informação dificulta a capacidade de jovens de identificar situações de violência, sendo que este é o grupo mais afetado pelo problema.
"[A campanha] tenderá a aumentar a violência sexual. É preciso dizer que a informação sobre sexualidade é muito importante para a gente poder denunciar a violência sexual, que muito comumente acontece dentro do ambiente familiar", explica.
Para a antropóloga e pesquisadora da USP, a educação sexual é a melhor forma de proteger crianças e adolescentes dessas violências.
"A gente já tem dados de pesquisas recentes mostrando que a violência sexual é muito mais comum quando as meninas são crianças ou adolescentes. Se ela tem mais informação sobre a vida sexual, ela tem mais capacidade de se proteger e denunciar quando alguém abusa dela. Então a informação é fundamental para proteger a infância, para proteger os adolescentes", aponta.
'É gostoso e é proibido': uma combinação problemática
Para Letícia Nascimento, que agora apoia as grávidas adolescentes de sua antiga comunidade, a campanha do governo erra ao não focar na divulgação da informação, o que ela acredita que poderia ter mudado sua trajetória, uma vez que a abstinência já era algo implícito mesmo dentro de casa e não funcionou.
"Não deveria ser algo 'proibido', deveria ensinar como fazer e o que não fazer", diz.
Já Ingrid Siss, a fundadora da Casa Dona Amélia, alerta sobre a falta de educação sexual e discussões sobre direitos das mulheres em áreas de periferia. De acordo com sua experiência, as famílias dessas regiões não dão orientações sobre o sexo, um assunto que segue um tabu dentro do ambiente familiar. Dessa forma, ela acredita que a ideia de abstinência, mesmo que de forma subjetiva, é propagada quase como a única orientação sexual dentro das famílias.
"A abstinência sexual não foi colocada em uma cartilha como está sendo colocada agora, mas ela já foi propagada de várias formas", afirma Ingrid, que considera o programa "Tudo Tem Seu Tempo" um "absurdo" e uma "alienação".
A proibição aberta ou velada, segundo ela, ao lado da falta de informação diante do prazer sexual, cria uma situação perigosa para a juventude
"É gostoso [...] e é proibido. Então são dois fatores que para aquela fase é perfeito. Você estimula, pelo efeito contrário, pessoas que não têm informação e não têm conhecimento a praticar algo. O maior vilão sempre vai ser a ausência de informação. Então proibir não zela ninguém, simplesmente estimula", aponta.
*As respostas do Ministério foram recebidas após a publicação e publicadas aqui.