Riad vai para o 'tudo ou nada', diz analista sobre instabilidade do petróleo

© REUTERS / Ahmed JadallahVista geral da refinaria e do terminal petrolífero da Saudi Aramco em Ras Tanura, na Arábia Saudita (foto do arquivo)
Vista geral da refinaria e do terminal petrolífero da Saudi Aramco em Ras Tanura, na Arábia Saudita (foto do arquivo) - Sputnik Brasil
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Às vésperas de uma importante reunião da OPEP+, o setor petrolífero mundial segue mergulhado em uma profunda instabilidade, em meio a quedas na demanda, aumento da oferta e crises econômicas e humanitárias.

Na última semana, após uma conversa telefônica entre o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, o reino wahhabita decidiu convocar uma reunião extraordinária, para a próxima quinta-feira, dos países membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo e aliados (OPEP+) para discutir a possível estabilização do mercado petrolífero.

Afetado por uma acentuada queda na demanda, provocada pela pandemia da COVID-19, o setor energético vem sofrendo também com uma guerra de preços liderada pela Arábia Saudita, que teve início após o fracasso de um acordo, no mês passado, com a Rússia e outros países, para estabelecer novos cortes na produção global. Desde então, Riad vem aumentando deliberadamente a oferta do combustível, que, nesta quarta-feira, fechou a US$ 31,87 o barril do Brent e a US$ 23,63 o americano. 

​Para alguns analistas do setor, o reino, incomodado com a perda de mercado nos Estados Unidos devido principalmente ao desenvolvimento do petróleo de xisto, que conta com uma tecnologia mais cara de produção, mas, ainda assim, conseguiu se popularizar nos EUA quando os preços dos barris estavam mais valorizados, decidiu atacar o problema de maneira simples e eficiente, inundando o mercado americano, e outros, com grandes quantidades de petróleo barato.

Entre os principais produtores mundiais, a Arábia Saudita leva grande vantagem em termos de custos de produção, gastando menos do que seus principais concorrentes. Em relação ao xisto dos EUA, a diferença é tão grande que, com o barril nos valores atuais, se torna inviável para grande parte dos produtores norte-americanos seguir com seus negócios, enquanto, para os sauditas, segue sendo bastante lucrativo. Dessa forma, além de poderem fornecer um produto com preços mais atraentes para os consumidores nos Estados Unidos, podem também se aproveitar da falência de algumas companhias para tentar comprá-las ou investir. 

​"A Arábia Saudita vai para uma espécie de tudo ou nada, tentando aí, de fato, fazer um dumping para, em um momento posterior, eventualmente, conquistar os assets de empresas que, inevitavelmente, vão quebrar porque têm um endividamento muito elevado, ainda não
conseguiram recuperar os investimentos feitos, não só, eu diria, em shale gas, mas em energia em geral", afirma o especialista em economia política internacional Vinícius Guilherme Rodrigues Vieira, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), em entrevista à Sputnik Brasil.

De acordo com o acadêmico, o que complica essa estratégia saudita é justamente o impacto do surto do novo coronavírus sobre a economia, que está derrubando de maneira muito forte a demanda. Para ele, um fator muito importante a se considerar nesse jogo, que pode ser decisivo tanto para sauditas como para russos e norte-americanos, é o resultado da próxima eleição presidencial nos EUA.

Caso os democratas consigam derrotar Donald Trump e retornar ao poder, é possível, segundo o professor, que haja um aumento nos incentivos às energias renováveis, ajudando a desequilibrar ainda mais a demanda por combustíveis fósseis.

"Essa crise em si, que coincidiu com os movimentos da Arábia Saudita, a crise do coronavírus, ela é tão sem precedentes que faz com que, hoje — para ser bastante honesto, é uma posição muito cômoda dizer isso —, seja praticamente impossível dizer com certeza, ou dar aí um grau elevado de certeza, sobre quem serão os vencedores e os perdedores dessa crise. Até porque o outro grande consumidor de petróleo, no caso, a China, também tende a passar por dificuldades, porque não vai conseguir redirecionar sua produção para o mercado doméstico. Enquanto o Ocidente e o resto do mundo sofrer com a crise do coronavírus, a tendência é a de que a demanda, independentemente da regulação da oferta, dite o ritmo e, portanto, os preços do mercado mundial de energia como um todo." 

Apesar dos diferentes interesses geopolíticos e econômicos de atores como Arábia Saudita, Rússia e Estados Unidos na atual crise petrolífera, o colapso do preço do petróleo tem raízes mais antigas do que as "motivações conjunturais", acredita o especialista Jorge Camargo, vice-presidente do Conselho Curador e coordenador do Núcleo de Energia do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

Também em declarações à Sputnik, Camargo explica que a lógica da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), de sacrificar participação de mercado para sustentar o preço, que vem ocorrendo desde a década de 1970, só funciona bem quando há uma percepção de que os valores do combustível continuarão subindo no futuro. Mas, a partir do momento em que diminui essa demanda por essa fonte de energia, caem também os preços futuros, levando a questionamentos sobre a efetividade dessa lógica.

Tal situação, que já vinha se desenvolvendo, segundo o especialista, se agravou consideravelmente com a pandemia da COVID-19, com profundas complicações para os produtores de petróleo de alto custo, particularmente, de xisto, que foi a grande novidade dos últimos anos e, hoje, parece pouco viável.

"Eu tenho a impressão de que, se essa nova tendência se consolidar, ou seja, se os produtores mais eficientes, como Arábia Saudita, Rússia, Oriente Médio, não estiverem mais dispostos de abrir mão de participação de mercado para sustentar, digamos assim, artificialmente o preço, o petróleo tende a se equilibrar, com a volatilidade que sempre teve, em uma faixa menor. Digamos que essa faixa fique de US$ 30 a US$ 50 o barril."

De acordo com o coordenador do Núcleo de Energia do Cebri, vale lembrar que, mesmo com esse aumento na oferta de petróleo, existe um obstáculo logístico para esse crescimento, que é a capacidade de armazenagem, que já está chegando ao seu limite. E, quando não houver mais para quem vender e onde estocar, não haverá outra alternativa a não ser parar de produzir.

"Vai haver uma acomodação, em função de algumas ações, digamos, de coordenação talvez. Estão falando de a Arábia Saudita voltar a sentar com a Rússia, Estados Unidos têm um papel também... Vai haver uma série de conversas. Mas o mais importante é a acomodação que o mercado vai encontrar. Eu tenho a percepção de que os preços vão ficar muito baixos, por um bom tempo, e isso vai fazer com que, naturalmente, os investimentos diminuam e a capacidade de escoar esse petróleo que hoje está em excedente vai provocar uma redução na oferta." 

Em vez de se debruçar sobre a possível compra de empresas norte-americanas, a Arábia Saudita parece mais interessada, hoje, em avançar na verticalização da Saudi Aramco, opina o pesquisador Rodrigo Leão, do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (Ineep).

"A Saudi Aramco tem feito alguns movimentos de internacionalização dos seus ativos, mas, principalmente, em refino na Ásia, e em outros países. Então, o objetivo, hoje, da Saudi Aramco é se estabelecer em grandes mercados de derivados", diz o analista à Sputnik. "Então, poderiam acontecer, eventualmente, movimentos no refino americano, mas não acredito que no shale gas. Eles estão buscando formas de agregar valor ao petróleo produzido na Arábia."

Seja como for, Leão concorda que, sem dúvida, a atual instabilidade nos preços do combustível tem relação direta com a postura de Riad, que, para ele, busca recuperar mercado não apenas nos Estados Unidos, mas no continente americano de maneira geral, agindo para minar a produção americana, canadense e também brasileira.

Assim como Camargo, em termos de futuro, o pesquisador do Ineep acredita que o mercado petrolífero caminha para uma nova faixa de preços, relativamente mais baixos, levando os países com custo de extração mais elevado a sofrer mais, enquanto os que conseguirem se posicionar de maneira mais verticalizada tenderão a se sair melhor nesse cenário. 

Para Vinícius Vieira, do ponto de vista pragmático, considerando-se as múltiplas crises que o mundo está enfrentando, é provável que, em algum momento, tente-se costurar um entendimento internacional liderado não pela a Arábia Saudita, mas, sim, pelas potências consumidoras, Estados Unidos e China, junto com a Rússia, o que, na prática, significaria um retorno ao mundo pré-OPEP. 

"Acredito que via G20 seria uma alternativa. O que não quer dizer que seja todo mundo do G20 dando as cartas, mas o G20 como instrumento de legitimidade de um acordo que seria ali costurado, sobretudo no alto nível, por esses dois grandes atores, China e Estados Unidos, talvez, ali, com a participação mais proeminente da Rússia e uma participação mais lateral da Arábia Saudita, o que seria, por si só, uma derrota da Arábia Saudita nesse jogo em que eles foram para o tudo ou nada."

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