O avanço da COVID-19 no Brasil é facilitado pela desigualdade social. As capitais, principais polos de disseminação da doença, têm grandes áreas de precariedade nas periferias e favelas, onde vive a maioria da população.
Cientes da desigualdade e da ausência do Estado em setores sensíveis como a saúde pública, moradores de favelas e periferias têm se organizado para salvar vidas onde moram.
É o que mostra, por exemplo, o Mapa Corona nas Periferias, apoiado pelo Instituto Marielle Franco. A iniciativa do coletivo Favela em Pauta já cadastrou mais de 80 grupos organizados em favelas de 15 cidades e nove estados do país.
"O objetivo da iniciativa é fazer com que as pessoas se conectem, tanto as pessoas que precisam de doações, quanto pessoas que querem doar e participar. A ideia é que todo mundo se cadastre e a pessoa veja o que é mais próximo da sua casa", conta Anielle Franco, diretora do Instituto Marielle Franco, em entrevista à Sputnik Brasil.
No Rio de Janeiro, cuja região metropolitana abriga as favelas mais conhecidas do Brasil, os moradores relatam uma luta árdua contra a desinformação, o desemprego, a falta de saneamento básico e a ausência parcial do Estado - que mantém a presença através de operações policiais.
Gabinete de crise do Alemão quer testagem em massa na favela
Na região do Complexo de Favelas do Alemão, onde vivem 180 mil pessoas, os moradores criaram um Gabinete de Crise para administrar uma política local de combate ao novo coronavírus. Os 30 membros do gabinete coordenam frentes humanitárias, de comunicação e de saúde na região para atender as necessidades dos moradores durante a pandemia.
Renê Silva, do grupo de comunicação Voz das Comunidades, é um dos membros do gabinete e explica que os voluntários recebem treinamento de equipes de saúde para a realização do trabalho de coleta e distribuição de doações.
"Aqui no Alemão, por exemplo, a gente já entregou mais de 2.500 cestas básicas e a gente deve receber mais doações essa semana para distribuir em outros pontos da comunidade. A gente sabe que só isso não vai adiantar. A gente sabe que vai apagar um pouquinho o fogo mas precisa de mais medidas", alerta Renê Silva em entrevista à Sputnik Brasil.
O bonde do #GabineteDeCriseAlemao partindo para mais uma missão no Complexo do Alemão de entrega de cestas básicas e kits de higiene.#COVID19nasFavelas pic.twitter.com/uohaG4DCnK
— Rene Silva 🐻 (@eurenesilva) April 16, 2020
Através dessa estrutura criada pelos moradores, Renê conta que há uma parceria em desenvolvimento com a Fiocruz para levar testes de COVID-19 à região. A instituição lançou uma plataforma de parcerias para ações do tipo.
"O objetivo maior é fazer testagens em massa para a gente ter um polo de testagem aqui no Complexo do Alemão [...]. Nosso objetivo, já que o poder público não tem feito, é a gente se organizar para tentar ajudar as pessoas que moram nessas áreas", explica Renê.
Solidariedade resiste em meio à pandemia e ao confronto armado
A ausência do poder público não é exclusiva das favelas do Alemão. Na Cidade de Deus, maior comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro, as operações policiais têm sido uma preocupação de segurança para voluntários que distribuem doações aos moradores.
"Acho importante falar que as operações [policiais] continuam acontecendo nas comunidades, a gente não tem visto isso sendo falado, a gente não vê notícias sendo veiculadas sobre isso, mas continua sendo uma constante", conta a psicóloga Ingrid Siss, uma das voluntárias da Casa Dona Amélia, na Cidade Deus, em entrevista à Sputnik Brasil.
A continuidade das operações, relata a psicóloga, dificulta as atividades de acolhimento e entrega das doações, além de minar a saúde mental de moradores que enfrentam ao mesmo tempo uma pandemia e um cenário de confronto armado.
Mesmo sob essas condições, Ingrid tem ajudado no cadastro de famílias e na distribuição de cestas básicas na região. Um dos focos do trabalho tem sido as gestantes.
"A gente já atendeu umas 100-150 famílias e estamos fazendo uma separação dos itens. [...] Para as gestantes a gente tem direcionado mais, a gente tem buscado fornecer não só uma coisa, não só a cesta básica", explica Ingrid, que aponta que as gestantes recebem também alimentos como legumes e verduras, produtos básicos de higiene e enxovais.
Ingrid trabalha diretamente com mais dois voluntários e tem se desdobrado para atender o máximo de famílias na região com parcerias com outros projetos, como a Frente Cidade de Deus, que também coordena um Gabinete de Crise local. Apesar de a demanda por assistência crescer a cada dia, não há apoio público para a iniciativa, que deve entregar mais 150 cestas básicas ao longo desta semana.
A insegurança se repete em Acari, como relata Buba Aguiar, membro do coletivo Fala Akari, que também organiza ações contra a pandemia na região.
"A gente teve uma operação ontem de manhã, começou umas 5h da manhã e depois 23h40 da noite o caveirão entrou de novo, baleou duas pessoas e foi embora. Está nesse nível. A gente contabilizou cinco mortes nesse período de isolamento social e agora mais esses dois baleados de ontem à noite" explica a ativista em entrevista à Sputnik Brasil.
A comunicadora diz que "nessa pauta da violência o Estado está sempre presente" e conta que o local onde seu coletivo armazena doações e monta as cestas básicas para a distribuição foi usado para realização de velórios de jovens executados nessas operações.
Buba explica que em meio a esse cenário tem apoiado famílias em situação de miséria. Até o final desta semana, ao todo, serão cerca de 300 cestas básicas distribuídas com recursos de doações e sem apoio governamental.
"Já bateu um mês de isolamento social e só agora as pessoas estão recebendo o auxílio [emergencial]. Então muita gente de fato está tendo sua situação amenizada por conta do nosso trabalho", relata a ativista.
Buba relata que ainda há muitos vizinhos desrespeitando o isolamento, mesmo com relatos de mortes com suspeita de COVID-19. Para aumentar a conscientização, o Fala Akari distribuiu panfletos de porta em porta e colocou faixas pelo bairro com informações sobre a COVID-19.
'A gente já sabia que seríamos os mais atingidos'
No complexo de favelas da Maré, ações de comunicação também foram criadas para alcançar os 140 mil moradores.
"Percebemos que a linguagem passada na mídia tradicional e pelos governantes era uma linguagem distanciada da linguagem da favela. Afinal não é todo mundo que tem água, não é todo mundo que tem sabão em casa", conta comunicadora Gizele Martins, da Frente de Mobilização da Maré.
A comunicação local usa carros de som, faixas, boletins eletrônicos, vídeos de profissionais de saúde em redes sociais e Whatsapp e um podcast com mensagens pedindo prevenção e solidariedade aos moradores.
São cerca de 10 coletivos e mais de 50 moradores voluntários nas ações de comunicação, coleta de doações e distribuição de mantimentos. Os esforços, aponta Gizele, não têm apoio governamental.
"A gente já sabia que nós seríamos os mais atingidos de novo, também em relação a essa pandemia do coronavírus, na falta de testes e do direito à Saúde", afirma.
A comunicadora recorda que os meses anteriores à pandemia foram de crise na saúde pública, com postos e clínicas fechados na região da Maré, uma ausência que com a chegada do novo coronavírus tornou-se ainda mais presente.
"É um caso de vida ou morte, principalmente para a gente que não tem qualquer tipo de atendimento de saúde básica", afirma.