Discurso pró-Bolsonaro: como populismo digital virou o cotidiano mesmo após campanha eleitoral?

© Foto / Agência Senado / Roque de SáO blogueiro Allan dos Santos cumprimenta o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) durante sessão da CPMI das Fake News (foto de arquivo)
O blogueiro Allan dos Santos cumprimenta o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) durante sessão da CPMI das Fake News (foto de arquivo) - Sputnik Brasil
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A comunicação do Governo Federal tem uma dimensão oculta alimentada por dinheiro público, privado e voluntários radicalizados. O objetivo é promover a agenda de Jair Bolsonaro sem mostrar o rosto. A Sputnik Brasil ouviu especialistas para entender o quadro.

Esse setor oficioso de comunicação tem sempre um objetivo: perseguir adversários e defender o presidente de maneira coordenada em redes sociais como Twitter, Facebook e WhatsApp. Mobilizado desde, pelo menos, a campanha presidencial, este setor segue operando até hoje. 

Ainda em 2018, surgiram informações sobre a opacidade da estratégia digital do então presidenciável do PSL. De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, empresários bancaram contratos de até R$ 12 milhões para o envio massivo de mensagens pró-Bolsonaro no WhatsApp. A loja de departamentos Havan estaria entre as empresas envolvidas no esquema. Como a doação empresarial é vedada pela legislação eleitoral e mensagens só podem ser enviadas para números obtidos pelo próprio candidato, a prática seria ilegal.

Novas informações apareceram com a CPMI das Fake News, instaurada pelo Congresso em setembro de 2019. Dados enviados pelo Facebook à CPMI mostraram que a página do Instagram "Bolsofeios" foi criada por Carlos Eduardo Guimarães, assessor parlamentar do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). A ligação entre "Bolsofeios" e o assessor pode ser feita porque a página foi criada em um computador da Câmara dos Deputados e com o e-mail de Guimarães. Após a divulgação das informações, a conta que publicava material laudatório ao clã presidencial e de ataque contra adversários políticos foi apagada. 

Secretário parlamentar do "zero três", Guimarães recebeu em março deste ano o salário líquido de mais de R$ 13 mil, informa a Câmara dos Deputados. Antes de trabalhar para Eduardo Bolsonaro, Guimarães teve o mesmo cargo de setembro de 2006 até fevereiro de 2015 no gabinete do então deputado Jair Bolsonaro, mostram dados obtidos pela Agência Pública por meio de pedido de lei de acesso à informação.

O sigilo da conta Bolsofeios foi quebrado após a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) afirmar em depoimento à CPMI que a página participava do grupo de conversa privada "SECRETO2 G.O." no Instagram. Trechos dos diálogos dentro do grupo foram repassados pelo Facebook ao Congresso e publicados pelo jornal O Globo. Em outubro de 2019, durante o racha no PSL que resultou na saída de Bolsonaro do partido em que foi eleito presidente, a conta "snapnaro" afirmou ser preciso "pegar pesado com os traidores" e "Bolsofeios" respondeu: "Amanhã é o Julian." Segundo o jornal, trata-se de uma referência ao deputado federal Julian Lemos (PSL-PB). 

Populismo na esfera digital

Para a antropóloga Letícia Cesarino, a estratégia de comunicação bolsonarista pode ser entendida como uma espécie de "populismo digital", porque tenta sempre organizar seu discurso em dois polos: nós contra eles, amigos contra inimigos. 

"Você está em um grupo ou em outro, é sobre você sentir repulsa pelo outro e sentir atração por quem é do seu grupo. Os memes trabalham muito com isso. A 'feminista feia, nojenta', isso é uma política de formação de grupo binária que opera no nível dos afetos, [Ernesto] Laclau já falava isso do populismo pré-digital", avalia a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) à Sputnik Brasil.

Ernesto Laclau foi um filósofo político argentino estudioso dos populismos clássicos de líderes como Juan Domingo Perón e Getúlio Vargas. Ele tentou demonstrar que o populismo não é uma exclusividade de um ou outro espectro político, mas, sim, um modo de fazer política ligado à formação de identidades coletivas. Analista da estratégia de comunicação bolsonarista, Cesarino alerta que o populismo sem limites pode virar fascismo. 

A professora da UFSC acompanha grupos bolsonaristas no WhatsApp e acredita haver uma coordenação dos conteúdos por autores não identificados. De acordo com Cesarino, existem "ondas de conteúdo" que indicam que certos temas e pautas surgem de maneira "não espontânea". 

Doutor em biologia é 'um m**da'

"A TV Cultura está como uma égua, e o [governador João] Doria com as rédeas na mão, chamando quem quer só para semear caos, histeria e desespero", diz, subindo algumas oitavas, o blogueiro e jornalista Allan dos Santos no canal no YouTube Terça Livre.

Descontente com a decisão da TV Cultura de fazer uma entrevista com o doutor em biologia Atila Iamarino, a quem Santos classificou como "um m**da", o blogueiro que já foi recebido por Bolsonaro duas vezes no Palácio do Planalto faz suas transmissões abaixo de uma série de retratos que incluem Pedro II e o escritor e guru Olavo de Carvalho. 

Iamarino foi entrevistado sobre a pandemia de coronavírus e Santos acredita que a imprensa o utilizou para fazer "histeria" e prejudicar a economia. A opinião de Iamarino contrasta com a de Olavo de Carvalho, que afirmou para seus milhares de seguidores que a pandemia de COVID-19 "não existe". 

A jornalista Vera Magalhães, responsável por conduzir e apresentar a entrevista com o doutor em biologia pela Universidade São Paulo (USP), foi classificada por Santos no Twitter como "veia doente, louca, histérica, maluca".

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Allan dos Santos é um personagem da CPMI das Fake News. Em depoimento de novembro de 2019, o blogueiro foi perguntado pela deputada federal Luizianne Lins (PT-CE) a razão de uma empresa em que tem participação, a TL Produção de Vídeos e Cursos Ltda, ter sido registrada na Receita Federal com o e-mail do empresário João Bernardo Barbosa. Em sua resposta, Santos afirmou que o empresário com participação na rede de fast-food Giraffas e em empresas no Brasil e nos Estados Unidos é um "voluntário" e "grande fã" do Terça Livre. 

Durante o depoimento, Santos também disse que poderia abrir seu sigilo fiscal, bancário e telefônico, mas depois recuou. 

Inspiração dos EUA?

A inspiração do Terça Livre é Alex Jones, um conspiracionista dos Estados Unidos que foi condenado a pagar US$ 100 mil por mentir sobre um massacre que deixou 20 crianças mortas na Escola Sandy Hook, na cidade de Newtown, em 2012. 

Santos se encontrou com Jones em fevereiro deste ano durante a conferência conservadora CPAC, realizada nos Estados Unidos. Nos bastidores do evento que contou com Eduardo Bolsonaro como palestrante, o blogueiro bolsonarista esteve com Jones e publicou registro em sua rede social. Jones, afirmou Santos, serviu como "inspiração" do Terça Livre. Já o conspiracionista dos EUA afirmou: "Estamos todos juntos nisso, como você diz: Deus, família e pátria."

Responsável pelo site Infowars, Jones é um negacionista das vacinas, defensor da tese da existência de um suposto "genocídio branco", acredita que o homem nunca pisou na Lua e que o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 foi praticado pelos próprios Estados Unidos. Banido do Facebok, Twitter, Instagram, Jones vende dezenas de produtos em sua loja virtual, inclusive um suposto suplemento que aumenta os níveis de testosterona. 

BLACKDO41255798

Allan dos Santos tem 300 mil seguidores no Twitter, mas a lista de pessoas a quem o jornalista recebido por Bolsonaro segue é mais seleta, são apenas algumas centenas de contas. Entre elas está o perfil BLACKDO41255798, que se descreve como "apenas um memeiro" de Fortaleza, no Ceará. 

O perfil BLACKDO41255798 segue no Twitter políticos que foram apontados pela agência de checagem Aos Fatos como disseminadores de desinformação e têm relação íntima com o Governo Federal. Os irmãos Flávio e Eduardo Bolsonaro, além dos deputados federais Daniel Silveira e Carlos Jordy, são seguidos pela conta.

O "memeiro" nordestino também segue oito contas apócrifas que fazem campanha irrestrita de Bolsonaro e perseguem seus opositores. Todas elas não têm foto dos reais autores das postagens ou identificação de quem escreve as publicações. Somadas, as oito contas apócrifas têm 1,1 milhão de seguidores.

Uma dessas contas apócrifas de grande alcance é a página Bolsonéas. De acordo com o depoimento da deputada Joice Hasselmann na CPMI das Fake News, a página integrava o grupo "SECRETO2 G.O." no Instagram, que contava com a participação de assessor parlamentar de Eduardo Bolsonaro. 

Reportagem da Folha de S. Paulo de 2018 indica que o responsável pela Bolsonéas é o técnico de radiologia Leonardo Barros, de 31 anos.

Procurado por e-mail pela Sputnik Brasil, Santos não respondeu se conhece os perfis bolsonaristas apócrifos citados e também qual sua relação com o empresário João Bernardo Barbosa.

Dinheiro não explica tudo 

O consultor de TI Carlos Afonso fez parte de uma rede de notícias falsas e distorcidas até 2018, quando resolveu expor o que sabia. Com o pseudônimo de Luciano Ayan, escrevia manchetes sensacionalistas para sites que eram republicados para a base de milhões de seguidores nas redes sociais do Movimento Brasil Livre (MBL). 

Em entrevista à Sputnik Brasil, Afonso conta que os sites em que participou, Ceticismo Político e Jornalivre, geravam uma receita média de US$ 4,5 mil em 2018. Durante os seis meses de monetização dos veículos, Afonso diz ter ficado com 30% dos recursos. Para ele, Allan dos Santos é uma das figuras centrais da máquina de comunicação bolsonarista, mas há também contribuidores voluntários.

"É muito parecido com a estrutura da alt-right [dos EUA] porque você tem os principais ativadores que ficam o dia inteiro pilhando as pessoas em termos de discursos extremistas, eles usam muito medo, ódio e ressentimento", afirma Afonso à Sputnik Brasil. "Tem muita gente que trabalha de maneira voluntária, senão não funcionaria. Se você pagar para muita gente, uma hora alguém pula fora e vai acabar contando."

Olavo de Carvalho é avaliado como uma espécie de "liderança intelectual" de grupos radicalizados e propagador de teorias da conspiração como o "marxismo cultural" — tese que guarda semelhanças com "bolchevismo cultural" usado por nazistas contra seus opositores na Alemanha das décadas de 1930 e 1940. 

© Sputnik / Thales SchmidtAto em defesa da Lava Jato em Copacabana, Rio de Janeiro, em 25 de agosto de 2019.
Discurso pró-Bolsonaro: como populismo digital virou o cotidiano mesmo após campanha eleitoral? - Sputnik Brasil
Ato em defesa da Lava Jato em Copacabana, Rio de Janeiro, em 25 de agosto de 2019.

O técnico de TI afirma que passou a receber ameaças de ter seus dados pessoais vazados por contas apócrifas no Twitter após conversar com a imprensa sobre os mecanismos de desinformação na Internet. 

Misoginia e machismo

A relatora da CPMI das Fake News, deputada federal Lídice da Mata (PSB-BA), afirma à Sputnik Brasil que há "grandes indícios" da existência de um setor oficioso de comunicação bolsonarista e que o Congresso está empenhado em seguir "investigando" o assunto após a renovação do prazo de trabalho da CPMI. A deputada também afirmou que o machismo e a misoginia são traços comuns da comunicação de Bolsonaro e de seus seguidores.

"O presidente da República geralmente briga com mulheres jornalistas e não com homens jornalistas. Isso é reflexo de uma certa característica do presidente de tentar buscar alvos tidos como 'mais frágeis', mais possíveis de serem atacadas no nível que ele faz. A rede de ataque também demonstra isso. Ela é extremamente misógina, machista. Isso tudo faz parte de uma estratégia de atemorização, de tentar meter medo. Acham que as mulheres vão se atemorizar com isso, é preciso entender que estamos em um outro tempo no mundo", afirma Mata.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender a prorrogação da CPMI das Fake News e determinar que as sessões já ocorridas sejam declaradas inválidas. O mesmo STF conta com um inquérito sobre fake news — que chegou, segundo informações do Jornal Correio Braziliense, ao nome do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos - RJ) como suposto mentor da estrutura.

A socióloga Esther Solano avalia que a verve bélica é inseparável da prática política de Bolsonaro. Professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e organizadora do livro "O ódio como política" (Editora Boitempo), Solano relembra que Bolsonaro fez carreira no Congresso por meio de declarações "racistas, misóginas e antidemocráticas" e que o presidente entende a política na forma "bélica, de confronto, do inimigo, como uma guerra".

"Não existe Bolsonaro sem discurso de ódio, não existe extrema-direita sem discurso de ódio justamente porque essa é a forma como os líderes da extrema-direita sabem e entendem a política. Muitas vezes as pessoas pensam que discurso de ódio é só uma cortina de fumaça para esconder políticas neoliberais, para esconder políticas conservadoras e retrógradas. Eu não concordo, acho que o discurso de ódio é a forma com qual a extrema-direita tenta entender a política, é o ethos político deles, a forma como eles fazem política. Eu duvido que Bolsonaro soubesse fazer política de uma outra forma", afirma Solano à Sputnik Brasil.
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