Nesta semana, a comunidade internacional se reuniu em assembleia na Organização Mundial da Saúde (OMS) para debater estratégias de combate à pandemia de COVID-19.
Mas os esforços foram parcialmente minados por uma renovada campanha anti-China, conduzida pelos EUA, cujo recrudescimento surpreendeu especialistas. O presidente norte-americano, Donald Trump, ameaçou inclusive romper relações diplomáticas com a China.
A China, por sua vez, passou a responder de maneira ríspida às acusações de que é alvo. Essa nova postura chinesa foi apelidada pela mídia local de "diplomacia do lobo guerreiro".
Por que as relações entre EUA e China vão tão mal? Existe risco das duas maiores economias do mundo entrarem em conflito armado? A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas para entender o que está por trás da troca de acusações entre Pequim e Washington.
Campanha eleitoral nos EUA
Para começo de conversa, é necessário considerar que o presidente dos EUA, Donald Trump, está em plena campanha eleitoral.
Para o professor do Insper e membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP Carlos Eduardo Lins da Silva, a retórica dura de Trump "tem muito mais a ver com a campanha eleitoral [nos EUA] do que com qualquer mudança programática de política externa".
"Trump precisa mostrar a seus eleitores que ele é duro tanto com a China, quanto com a Rússia. E para ele não há nada mais prioritário do que reeleger-se", disse Lins da Silva à Sputnik Brasil.
No entanto, independentemente da reeleição, há consensos bipartidários nos EUA em torno da necessidade de conter a China, acredita Bruno Hendler, coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria.
"Os EUA conduzem uma política de Estado voltada para a contenção geopolítica da China. A estratégia é constante, mas a tática pode variar de governo para governo", disse Hendler à Sputnik Brasil.
Interdependência econômica?
As economias de China e Estados Unidos são mutuamente dependentes e já estiveram tão conectadas que especialistas acreditavam que, entre os dois países, havia uma situação de destruição econômica mútua assegurada: "Se um quebrasse, o outro também quebraria", explicou Hendler.
Essa interdependência, no entanto, vem mudando e favorece cada vez mais a China, acredita Hendler. "A China não é mais aquele país que vende produtos de baixo valor agregado para serem consumidos a preços baixos nos EUA."
"Temos três grandes fases da interdependência [...] Na primeira fase, nos anos 80 e 90, ela é favorável aos EUA. Na segunda fase, nos anos 2000, é uma interdependência virtualmente simétrica, ou equilibrada. A partir da crise de 2008, no entanto, ela vem se tornando gradualmente mais favorável para a China", explicou Hendler.
Depois da crise de 2008 nos EUA, a China teria percebido a necessidade de diminuir sua dependência dos consumidores norte-americanos e passado a investir em seu mercado interno.
Neste momento, a "China para de comprar títulos da dívida pública dos EUA" para investir "em empresas nacionais de infraestrutura e tecnologia de ponta". Essas "campeãs nacionais" vão receber apoio de bancos de fomento chineses.
"Nesse contexto, temos iniciativas como a Rota da Seda", que investe recursos chineses em países em desenvolvimento, e "bancos de fomento", como o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS.
Dessa forma, "a China tenta buscar outros mercados para ser menos dependente dos norte-americanos, e está sendo bem sucedida nisso".
Investimentos dos EUA na China
A retórica dura de Washington pode ser interpretada não como sinal de poder, mas de fraqueza. Os EUA seguem dependentes do mercado chinês, principalmente do retorno dos investimentos que suas empresas realizam na China.
"Os EUA estão muito vulneráveis porque não estão conseguindo conter o fluxo de investimentos que empresas norte-americanas fazem na China", explicou Hendler.
Em 2017, a renda total das companhias americanas na China foi estimada em US$ 544 bilhões (cerca de R$ 3 trilhões), recursos dos quais a economia dos EUA não pode prescindir.
"Enquanto a dependência da China em relação aos EUA diminui, a dependência dos EUA em relação à China aumenta cada vez mais", o que gera frustração em Washington, disse Hendler.
Empresas norte-americanas "do setor de entretenimento, da esfera de serviços e bens de consumo, seguem buscando o mercado chinês" em busca de melhores retornos.
Essa frustração é expressa na "retórica dura" de Trump, que busca mobilizar seus eleitores e aliados europeus em uma campanha abrangente contra a China.
Pandemia de COVID-19
Se o relacionamento entre Pequim e Washington já estava bastante complicado em função das "guerras comerciais" travadas antes da COVID-19, a pandemia veio para complicar ainda mais esse quadro.
"A pandemia é uma oportunidade para endurecer o discurso em relação à China. É nítido que ela é usada como uma forma de populismo pelo Trump", acredita Hendler.
Lins da Silva nota que, apesar da "a China também se enfraquecer economicamente com a crise do coronavírus", ela está melhor posicionada para se beneficiar diplomaticamente da pandemia.
"[A China] tentará continuar ocupando o vácuo de liderança deixado por Trump nas organizações multilaterais e em diversas regiões do mundo, como África e América Latina", acredita Lins da Silva.
Hendler concorda, e acredita que a China utilizará o momento para impulsionar sua "diplomacia de saúde", voltada para países em desenvolvimento.
"A China tem uma política de exportações de serviços de saúde muito antiga. Com a COVID-19 eles estão exportando médicos e aumentando a sua projeção no sul global e na Europa", notou.
Os EUA, por outro lado, são o país mais afetado pela COVID-19 mundialmente e tomou algumas medidas pouco diplomáticas para garantir seu suprimento de equipamentos médicos, gerando atrito inclusive com França e Alemanha.
Portanto, os EUA podem sentir-se coagidos a recrudescer sua retórica contra a China e o clima "deve continuar tenso pelo menos até a eleição americana se realizar".
Conflito militar
Apesar da pandemia e das acusações mútuas, os especialistas não acreditam na eclosão de um conflito militar entre as duas potências.
"A possibilidade de um conflito aberto é mínima", acredita Hendler, que cita o "dilema nuclear" e lembra que "uma guerra aberta entre duas potências nucleares nunca aconteceu".
Além disso, apesar da retórica do presidente, "tem pessoas altamente qualificadas por trás da formulação da política externa norte-americana", que não apostam em uma guerra aberta com Pequim.
Lins da Silva argumenta que nem o presidente Donald Trump estaria interessado em um conflito militar de larga escala.
"Não vejo ameaça séria à segurança global nesse período, porque não interessa a Trump um conflito aberto e perigoso durante a sua campanha", concluiu Lins da Silva.