A cena de George Floyd sendo assassinado pela polícia em via pública, em plena luz do dia, é bastante familiar aos brasileiros. Por que a conduta policial nos EUA e no Brasil são tão parecidas? O Brasil reage da mesma forma aos assassinatos de negros pela polícia?
A Sputnik Brasil conversou com Flávio Thales Ribeiro Francisco, professor de Ciências Humanas e Relações Internacionais da UFABC, para debater a questão racial e conduta da polícia no Brasil e nos EUA.
"Um ponto que une a conduta policial no Brasil e nos EUA é a militarização das polícias", disse Francisco à Sputnik Brasil. "Mas são duas histórias distintas de militarização."
No Brasil, a militarização é um resquício das ditaduras, que utilizavas as polícias para "caçar inimigos do regime".
No caso dos EUA, "desde a década de 60, a polícia passou a aplicar táticas de combate empregadas na Guerra do Vietnã nos centros urbanos", notadamente nos bairros de maioria negra e latina.
"A lógica militar precisa do ataque ao inimigo", que será identificado nos bairros aonde vivem as minorias raciais, considerados "espaços hostis".
"Supomos que a polícia trabalhe não só para estabelecer a ordem, mas também para garantir a proteção e segurança de seus cidadãos. Isso não é colocado em prática se a polícia trabalha com a ideia de territórios 'inimigos', que em tese não necessitam de nenhum tipo de proteção", explicou o professor.
A identificação das comunidades como "territórios hostis" que devem ser "atacados" também é uma realidade no Brasil, flagrante em casos como "o da operação policial durante festival de funk na favela de Paraisópolis", em dezembro de 2019, que deixou nove jovens mortos.
"Nesse caso, a morte faz parte da tática empregada pela polícia. Não é um desvio de operação. Os policiais são treinados justamente para fazer esse tipo de coisa", lamentou.
Por isso, para Francisco, a desmilitarização e a reforma das polícias seriam medidas efetivas para lidar com a violência policial, tanto no Brasil quanto nos EUA.
"Os protestos nos EUA agora estão na fase de insurgência. Mas será necessário organizar esses movimentos, que são espontâneos, para construir uma agenda de reforma da polícia", disse Francisco.
"Eu acho que a reforma policial seria um avanço, porque a experiência de ser afro-americano hoje é a experiência de ser um cidadão de segunda classe", disse.
Cidadão de segunda classe
Outra semelhança entre as experiências de Brasil e EUA é o legado da escravidão, que tem papel determinante na conduta das polícias contra as minorias afrodescendentes.
"Historiadores do Brasil e dos EUA que trabalham com segurança vão identificar uma relação entre a formação das polícias e enquadramento dos escravos, tanto nos EUA quanto no Brasil", disse Francisco.
"A ideia de que o Estado precisa controlar uma parte das pessoas, que são cidadãos que valem menos" é um legado da escravidão.
"E quando consideramos alguns cidadãos como subalternos, não há nenhum problema em usar os recursos mais repressivos da polícia contra eles", notou o professor.
"Se acreditamos que algumas pessoas valem menos, a polícia pode matar três, quatro ou cinco deles, que não irá sensibilizar a opinião pública [...] Isso nos ajuda a entender a importância de movimentos nos EUA como o Black Lives Matter [Vidas Negras Importam]."
Após a abolição da escravidão, os EUA adotaram o regime de segregação, que limitava o acesso dos afrodescendentes às universidades e estipulava os locais que negros podiam frequentar, de modo a nunca dividirem espaços com os brancos.
"Nos EUA, quando temos o fim dessas leis de segregação racial, a polícia entra para preencher a lacuna e reprimir os 'inimigos' e 'territórios hostis', onde vivem as minorias negras e latinas", explicou.
"Não é só a polícia que atua" nesse processo que perpetua a segregação racial por outros métodos, "mas também os juízes, os procuradores, que têm uma mão muito mais pesada quando julgam negros", contou Francisco.
Manifestações no Brasil
A Polícia Militar brasileira tem histórico lamentável de assassinatos impunes, notadamente "durante operações extremamente violentas nas comunidades, que acabam tomando a vida de crianças", traço típico do "padrão brasileiro" de violência policial.
Da mesma forma que nos EUA, "as pessoas no Brasil reagem à violência policial [...] não faltam exemplos de pessoas que vão para as ruas".
"No entanto, existe uma tendência a criminalizar" esses manifestantes, acusando-os de "saíram às ruas para proteger traficantes".
"No Brasil, esses levantes não são considerados atos de cidadania. Os manifestantes não são considerados pessoas que estão exercendo seus direitos e brigando por justiça", explicou Francisco.
Nos EUA, parte da opinião pública também deslegitima os protestos, classificando os manifestantes de "não americanos".
"Essa visão conservadora acredita que os grupos minoritários não assimilam os valores como a livre iniciativa e a individualidade, então não deveriam poder jogar o jogo democrático", ponderou.
Francisco discorda dessa visão e acredita que, pelo contrário, os protestos nos EUA são fortalecidos pelo valor democrático da desobediência civil.
"Elemento da cultura política norte-americana, que não circula no Brasil, é a ideia de desobediência civil, que era um princípio fundamental de Martin Luther King", líder afro-americano ganhador do Prêmio Nobel, assassinado em 1968.
"É um princípio da política norte-americana, baseado na ideia de que, se o Estado rompe o pacto social, o cidadão tem o direito de reagir e ir para a rua", explicou.
Os EUA entram no décimo dia consecutivo de manifestações contra a violência policial, em memória de George Floyd, afro-americano assassinado pelo policial Derek Chauvin, que ajoelhou no pescoço da vítima por quase nove minutos.