Em 2017 e 2018, o relatório apresentava os dados sobre violações de direitos humanos cometidas por policiais, denúncias acumuladas através do Disque 100. O canal foi criado em 1997 e a partir de 2003 tornou-se responsabilidade do governo federal. Atualmente, o canal é administrado pelo Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, liderado pela ministra Damares Alves.
Nos anos anteriores, os dados apontaram aumento da violência policial no Brasil. Em 2016, foram 1.009 denúncias registradas, o que aumentou para 1.319 no ano seguinte e 1.637 em 2018. Em nota enviada a uma reportagem publicada pelo jornal O Globo, o Ministério afirmou que a exclusão dos dados foi técnica e falou em divulgação posterior após "estudo aprofundado", alegando inconsistências nas informações.
Para José Ricardo Rocha Bandeira, especialista em segurança pública e presidente do Conselho Nacional de Peritos Judiciais (CONPEJ), a alegação de inconsistência do governo não é verdadeira, uma vez que as informações já haviam sido divulgadas no mesmo formato em anos anteriores.
"A supressão desses dados a respeito da violência policial é algo muito grave. Muito grave porque, primeiro a justificativa do governo federal alegando inconsistência nos dados não procede, porque esse é um modelo que já vinha sido adotado, é um modelo utilizado, e nunca tivemos problemas com esse tipo de análise e inserção de dados", afirma o especialista em entrevista à Sputnik Brasil.
"Infelizmente o governo federal decide omitir esses dados em um momento em que nós estamos vivendo diversas manifestações ao redor do mundo justamente devido à violência policial. E o governo federal, sem dúvida alguma, ao omitir esses dados pretende de alguma forma se resguardar para que esses movimentos em defesa dos direitos humanos e contra a violência policial não cresçam no Brasil", afirma.
Sonegação de dados é típica de governos autoritários, diz sociólogo
A exclusão ou questionamento de dados pelo governo federal comandado pelo presidente Jair Bolsonaro não é novidade. Em 2019, dados do INPE sobre desmatamento no Brasil foram amplamente questionados pelo governo. Já neste ano, o episódio da exclusão de dados sobre os mortos durante a pandemia da COVID-19 em relatório do Ministério da Saúde, tornou-se episódio notório.
"Mais uma vez o governo federal opta pela estratégia de omissão de dados. Assim como feito recentemente no que diz respeito aos dados da COVID-19, da pandemia, onde o governo decidiu também alterar o modelo de exibição desses dados", afirma o especialista em segurança pública.
Para o sociólogo Alexandre Magalhães, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o caso da omissão de dados de violência policial também se relaciona com o da COVID-19.
"Quando as informações sobre determinadas questões expõem alguma tragédia social ou ambiental em curso, o governo atual busca maneiras de impedi-las de vir a público", afirma o sociólogo em entrevista à Sputnik Brasil.
"Há um esforço contínuo de sonegação de informações importantes em domínios dos mais distintos, desde aqueles relacionados ao combate à corrupção, como aconteceu com o extinto COAF [o Conselho de Controle de Atividades Financeiras foi renomeado em 2019 e agora se chama Unidade de Inteligência Financeira], como lembramos bem, passando pela destruição ambiental até a omissão de dados sobre a violência policial. Tal política de sonegação de dados e informações é típica de governos autoritários que buscam esconder as mazelas e problemas de suas sociedades - já que não têm interesse algum em resolvê-las - e impossibilitar qualquer tipo de controle social e democrático", aponta.
Omissão de dados retarda políticas públicas e silencia movimentos
O especialista em segurança pública, José Ricardo Rocha Bandeira, ressalta que a falta dos dados prejudica a elaboração de políticas públicas no setor e pode influenciar a atuação das polícias. Para ele, chama a atenção o fato de que a omissão de dados vem em um momento em que parte da política institucional defende o aumento da letalidade e do enfrentamento policial no combate ao crime.
"Porque eles acreditam que uma polícia mais letal, uma polícia que enfrenta mais, é uma polícia capaz de reduzir os índices de violência e de criminalidade, coisa que nós já sabemos que não é verdade. Há mais de 30 anos que nós temos uma política de enfrentamento no Brasil e nós não conseguimos reduzir nenhum número de violência ou de criminalidade nas principais regiões do país", afirma o especialista.
O sociólogo Alexandre Magalhães avalia que a estrutura policial brasileira é um resquício da Ditadura Militar e que a atuação da sociedade civil tem sido fundamental para melhorar os dados sobre a violência da polícia no Brasil.
"Apenas para se ter uma ideia, somente as polícias do Rio de Janeiro mataram mais de 1,8 mil pessoas em 2019. E, ao que tudo indica, mesmo com a pandemia, [em 2020] esse número deve ficar muito próximo ou mesmo ultrapassar o recorde macabro", diz.
Ao longo do mês de abril deste ano, a polícia do Rio de Janeiro bateu recordes de letalidade, tendo sido responsável pela morte de 177 pessoas, apesar das restrições impostas pela pandemia no estado. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, esse foi o mês de abril mais violento da história fluminense.
Sem dados, situação pode piorar ainda mais
Bandeira lamenta a situação atual e aponta que mesmo a divulgação dos dados com atraso pode ser um problema, tendo em vista a atual política de segurança pública. O atraso nos dados, segundo ele, impede a sociedade civil de se organizar propriamente e demandar melhoras.
"Nós, infelizmente, temos uma verdadeira política de extermínio nas periferias dos grandes centros do Brasil. Jovens, negros e pobres têm morrido indiscriminadamente nas periferias. Nós temos uma política de encarceramento que é extremamente preconceituosa. Então o jovem que não é morto devido à violência nas periferias, ele será encarcerado, 70% da nossa população carcerária é composta por jovens, negros e pobres", ressalta o especialista.
Na mesma linha, o sociólogo Alexandre Magalhães ressalta que movimentos sociais denunciam a violência policial como parte da gênese da instituição.
"Considerando o surgimento e o desenvolvimento dessas instituições ao longo da nossa história, vemos de forma cabal que elas não foram criadas para garantir a segurança da população. Ou melhor dizendo, elas foram criadas para garantir a segurança de uns e suas propriedades em detrimento de outros. Isto é, alguns precisam ser sacrificados para que outros possam continuar vivendo e consumindo. Não à toa, uma das reivindicações coletivas de movimentos sociais negros e periféricos é a desativação dessa máquina de guerra racista e violenta", conclui Magalhães.