A equipe econômica do governo federal finaliza neste mês uma proposta de Reforma Tributária a ser enviada ao Congresso Nacional em meio à crise provocada pela pandemia da COVID-19.
Segundo o Tesouro Nacional, o objetivo é reduzir o número de impostos através de uma simplificação tributária.
O cenário do segundo semestre de 2020, em meio à crise do coronavírus e às próximas eleições municipais, pode impactar a tramitação do projeto? Os especialistas consultados pela Sputnik Brasil divergem sobre o tema.
O economista e escritor Paulo Rabelo de Castro, ex-presidente do BNDES e do IBGE, candidato a vice-presidente em 2018 na chapa do senador Álvaro Dias, classificou o sistema atual de "hospício".
"O sistema tributário brasileiro nem sistema é. É uma verdadeira bagunça. Mais do que uma bagunça. Eu costumo chamar de manicômio tributário, porque de fato parece um hospício. E o que nós precisamos fazer é muito simples: é acabar com o hospício, derrubar os portões do hospício, derrubar os muros que nos cercam dentro dessa carga tributária infernal e para isso existem três condições básicas", explicou o Paulo Rabelo de Castro à Sputnik Brasil.
Para o economista, o primeiro passo seria simplificar os procedimentos "confusos". Em segundo, os parlamentares devem pensar na competitividade das empresas, "porque nenhum empresário brasileiro pode concorrer adequadamente com um sistema tributário tão complexo e pesado [...] onde o produto vai sobrecarregado de cargas que não deveriam estar lá, porque não fazem parte do custo de produção", mesmo no caso de produtos que serão exportados.
Finalmente, segundo o escritor, o sistema precisa ser mais justo e "equitativo". "Para que, cada vez mais, o sistema confie na capacidade contributiva de cada um e não faça o que acontece hoje", com preços embutidos no valor final dos produtos, a chamada carga indireta, "porque o empresário coloca o tributo no produto e quem paga é o consumidor".
Rabelo de Castro alertou, no entanto, que, se a reforma afetar as cargas preexistentes e as repartições entre os municípios, estados e União Federal, a votação poderá ser embarreirada no Congresso Nacional.
Imposto único atrai investimento
O economista defende que quantidade de tributos sobre produtos e serviços deve diminuir. "Sobre produtos manufaturados, hoje em dia, incide o ICMS, que tem base estadual; incide também, com base federal, o IPI; assim como, a Contribuição Social, PIS e Cofins. E também o ISS, no caso dos serviços", disse o economista. Essa é apenas a tributação básica, lembrou o interlocutor da Sputnik Brasil, sem considerar a contribuição previdenciária relativa a todos os trabalhadores envolvidos no processo produtivo.
"Nós precisamos juntar, como se fosse um grande [Imposto] Simples, todas essas categorias tributárias e apresentá-las ao contribuinte como uma única categoria tributária. Chamemos isso de IVA, como é chamado em outros países, Imposto de Valor Agregado, ou como está nas duas proposta discutidas, muito fracas por sinal ... IBS, Imposto sobre Bens e Serviços", disse o entrevistado.
A incidência precisa ser mais automática possível, estabelecendo quatro ou cinco patamares, dependendo do grau de essencialidade, para tarifar de forma diferente "um saco de feijão e um frasco de perfume". A medida serviria também para aumentar a atratividade do país ao investidor internacional.
"Isso facilitará muito ao investidor estrangeiro vir fazer investimentos aqui, porque ele hoje não entende o que está acontecendo no manicômio. Aliás, é difícil, salvo para os psiquiatras e enfermeiros, entender como é a lógica de um hospício. E isso é um hospício. Principalmente quando ele se pergunta por que, por exemplo, ainda se tributam os investimentos, os ativos fixos aqui. Nós penalizamos e jogamos no preço final do produto os tributos sobre equipamentos e máquinas que irão produzir. Isso é um escândalo", concluiu o especialista.
Apesar dos desafios, Paulo Rabelo de Castro acredita que a crise econômica, provocada pela pandemia do novo coronavírus, poderá acelerar a busca por alternativas em função do recuo da renda. Para ele, o governo deve assumir os riscos e buscar a aprovação do projeto, pois essa seria uma "reforma popular que vai ajudar muito a se firmar lá em cima quem está na liderança do país".
"É preciso encarar esse desafio. O que essa equipe econômica está devendo há quase dois anos é um absurdo. Porque eles já deveriam ter enquadrado o Congresso Nacional na primeira hora, antes mesmo da Reforma dita Previdenciária, que não trouxe até agora nenhum benefício prático [...] Desistir de fazer esse esforço no segundo semestre é desistir de governar", afirmou.
Redução das obrigações administrativas
Para o advogado tributarista Caio Bartine, coordenador de Direito Tributário do Curso Damásio Educacional em São Paulo, a Reforma Tributária deve buscar a simplificação do cumprimento das obrigações administrativas.
"O Brasil é um dos países que tem o maior número de horas por ano em atendimento das obrigações de natureza administrativa. Enquanto a média dos países gira em torno de 300 horas por ano, o Brasil tem em torno de 1.900 horas por ano para atendimento de obrigações administrativas para cumprir o pagamento de tributos em geral", disse o advogado à Sputnik Brasil.
As empresas, para poder cumprir com as exigências, acabam precisando organizar controladorias internas e externas, através de firmas de contabilidade, auditorias fiscais, tributárias e contábeis. Mesmo assim, o processo continua sujeito ao erro.
"Isso acaba encarecendo e diminuindo a concorrência das empresas", alertou.
O advogado também defendeu a diminuição da carga tributária. Segundo ele, cerca de 40% PIB do país são formados por tributos, reduzindo a atratividade e a competitividade.
"Diminuir carga tributária está diretamente relacionado à diminuição de despesa pública. Não se tem mágica para isso. Só se pode falar em alívio de carga tributária quando eu tenho um alívio da despesa pública. Enquanto eu tiver um aumento significativo da despesa pública, a carga tributária não vai mudar", afirmou Caio Bartine.
O advogado concorda com Rabelo de Castro de que a simplificação da tributação, através da unificação dos impostos sobre consumo, "vai ser um caminho importante para a diminuição dos encargos com cumprimento de obrigações administrativas".
"Em vez do empresário, diretamente, ter que se preocupar com legislações distintas e prazos diferenciados de cada uma destas obrigações, gerando cada uma delas diferentemente [...] essa reunião simplifica depende de menos atendimentos externos, de auditorias, o que vai, consequentemente, não ser mais repassado ao consumidor final. Isso acaba tornando o setor mais competitivo e aí precisaria se analisar se esse custo final vai ser repassado ao consumidor, bem como a moralidade do setor empresarial, para repassar esse lucro para o consumidor", afirmou Bartine.
Apesar do ambiente pouco propício, que acaba prejudicando o bom andamento dessas propostas de emenda constitucional perante o Congresso Nacional, o advogado tributarista aposta no sucesso de uma possível votação, pois a reforma seria "de interesse de todos os estados e de todos os municípios", e os deputados, tanto da base do governo quanto da oposição, reconhecem a necessidade da Reforma Tributária.
Empresas não pagam que deveriam
Por outro lado, Antônio Marcelo Jackson, cientista político e professor do Departamento de Educação e Tecnologias (DEETE) da Universidade Federal de Ouro Preto, destacou que, quando se fala em Reforma Tributária, o costume é exagerar sobre o peso da carga de impostos, como se o Brasil fosse uma exceção, o que não seria o fato.
"A grande questão não é discutir a carga tributária, e sim sobre o que ela incide e como o tributo é redistribuído mais a frente como recurso do governo. Esses são os pontos-chave", disse o professor para agência Sputnik Brasil.
Para ele, a incidência dos tributos no Brasil é feita de forma pouco preocupada com questões sociais. Os mesmos produtos são tarifados mais de uma vez e ninguém considera um problema como esse tipo de tributação dupla afeta os preços do "arroz, feijão, farinha, produtos alimentícios, de uma forma geral e de higiene pessoal".
Enquanto isso, a resistência para tributar grandes fortunas é grande, por medo de uma suposta "agenda comunista", o que também seria uma falácia.
"Basta lembrar que países como Estados Unidos, Inglaterra, França, todos os países têm isso. Isso não é problema nenhum para ninguém", afirmou.
"O que acontece no Brasil? Você cria impostos e tributos que vão acabar incidindo sobre a grande massa da população, os pobres de uma forma geral, e os assalariados, enquanto os rentistas, aquele sujeito que vive de investimentos, os grandes empresários, esses são largamente beneficiados. Isso é um problema e uma desigualdade absurda", destacou o especialista.
Os grandes contribuintes, quando reclamam da alta carga tributária "esquecem de dizer que o governo, principalmente o atual governo, faz de renúncia fiscal, o que ele isenta de impostos essas grandes empresas. É um absurdo. Diga-se de passagem, isso não é privilégio do atual governo. Todos os governos brasileiros sempre isentaram os impostos de grandes empresas", lembrou o cientista político.
Como o imposto acaba sendo refletido no preço, muitas vezes quem paga esse imposto maior é o consumidor, e não o grande contribuinte. Por outro lado, tem a isenção fiscal do governo. Dessa forma, "ele [o empresário] diz que paga, quando na verdade não paga imposto".
"Se estamos falando de uma Reforma Tributária, vamos começar primeiro a tributar efetivamente. Porque o pouco que esse contribuinte grande pagaria, ele consegue não pagar via renúncia fiscal", destacou Marcelo Jackson.
O professor concorda, no entanto, com avaliação de Paulo Rabelo de Castro de que alterar a distribuição de impostos entre estados e municípios, ainda mais em ano de eleições, "arrepia os cabelos de qualquer candidato a prefeito ou prefeitos que sejam candidatos à reeleição".
"Reforma que pode afetar a arrecadação é algo que, de forma geral, os prefeitos não gostam", disse Jackson. Além disso, muitos possuem vínculos íntimos com deputados federais ou são candidatos. Nesse caso, a votação na Câmara será bastante dificultada.
"De um lado, temos uma Câmara de Deputados completamente favorável aos grandes empresários [...] É óbvio que, ao votar a Reforma Tributária, eles vão beneficiar esses empresários [...] Por outro lado tem a eleição, que pode afetar a arrecadação dos municípios", avaliou o especialista.
Essa configuração, segundo ele, dificulta as chances de uma reforma aprovada ainda este ano.