Sendo assim, as perspectivas para o ramo em 2020 eram muito boas. Entretanto, a chegada da COVID-19 impactou o setor de sua maneira.
A Sputnik Brasil falou com especialistas em agropecuária para entender melhor a influência da pandemia sobre o setor, bem como sobre as lições que os representantes do ramo e o governo poderiam aprender com a situação.
Expectativas vs. realidade
Dra. Nicole Rennó, pesquisadora em macroeconomia do CEPEA da Esalq/USP, explicou à Sputnik Brasil o porquê da grande expectativa do setor em 2020 antes da pandemia.
Segundo a pesquisadora, dá para destacar quatro pontos-chave dessa aposta: a perspectiva excelente para a safra de grãos importantes para o volume produzido de café; a persistência da peste suína africana, sobretudo na China, que iria favorecer a demanda internacional e os preços domésticos das carnes; e as boas perspectivas para o setor de biocombustíveis diante do RenovaBio, política nacional de biocombustíveis. Além disso, em 2020 ia se consolidando uma expectativa de melhora no crescimento do PIB brasileiro para o ano, que iria favorecer o desempenho da agroindústria de base agrícola.
Entretanto, mesmo com a chegada da pandemia, as perspectivas continuam boas, de acordo com a analista, embora haja "algumas mudanças importantes e alguma piora diante do que se esperava anteriormente".
Vale destacar que, em momentos de crise, a agricultura costuma ser um dos setores menos afetados, já que a questão alimentícia continua sendo fundamental mesmo com desemprego e diminuição de renda.
Segundo o relatório da PricewaterhouseCoopers Brasil (PwC Brasil), intitulado "Impactos da COVID-19 no agronegócio brasileiro", o isolamento social faz com que cresça a demanda de produtos com longa duração de armazenamento.
"O isolamento social estimula a demanda de produtos que permitem um maior tempo de armazenamento (soja, milho, trigo e café), impactando cadeias de valor de produtos perecíveis (frutas, legumes, flores)."
Além disso, segundo o relatório, "a valorização do dólar ante o real compensa parte da queda dos preços das commodities agrícolas, favorecendo as exportações".
Tal fato também é destacado por Rennó. "Produção de grãos vai ser recorde, 250 milhões de toneladas, produção de café muito maior que na safra anterior, preços da agricultura estão bons e com perspectiva de altos patamares, nesse último caso, influenciados pelo real desvalorizado, pela boa demanda externa e alguma recuperação de demanda doméstica para certos produtos."
Ao mesmo tempo, segundo a analista entrevistada pela Sputnik Brasil, há perspectivas mais preocupantes principalmente para os segmentos específicos da agropecuária, como a floricultura e a hortifruticultura.
"Estudo do CEPEA indicou que grande parte dos produtores de frutas e hortaliças teve a rentabilidade prejudicada, parcial ou totalmente, com a pandemia; esse cenário pode se estender caso as interrupções ou limitações de vias de comercialização se mantenham por período mais longo no país."
A analista concluiu que esse lado negativo das perspectivas pode ser reforçado, dependendo da intensidade do efeito da pandemia.
Carnes batem recorde
Em meados de março, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) estimou que, não obstante a pandemia, em 2020 o Valor Bruto da Produção (VBP) agropecuária do país deve atingir recorde ao chegar a R$ 706,7 bilhões, ou seja, 10,6% mais que no ano anterior.
Nicole Rennó observou que, por enquanto, não há dados que mostrem se a previsão está se concretizando. Entretanto, segundo a pesquisadora, os bons patamares de preços das carnes reforçam essa tendência que, por sua vez, é apoiada pela demanda do produto por parte da China.
"Embora a maior parte da carne produzida no Brasil seja usualmente destinada ao mercado interno, nesse ano, assim como foi em 2019, com a demanda do brasileiro enfraquecida, o impulso tem vindo do excelente desempenho exportador, com destaque para o papel da China. Esse movimento é particularmente reforçado pela persistência da peste suína africana na Ásia assim como pelos novos casos de febre aftosa na China."
Tatiana Palermo, consultora e ex-secretária de Relações Internacionais do Agronegócio do Ministério da Agricultura (MAPA), confirmou à Sputnik Brasil que o aumento da produção de carne se deve parcialmente ao impulso pela demanda externa e citou alguns números.
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"No ano passado, por exemplo, mais de 23% da produção total de carne bovina foi exportada. Conforme a nota do MAPA […] as exportações de carne bovina no período de janeiro a maio deste ano representaram 46,2% das vendas totais de carnes, somando US$ 3,19 bilhões (cerca de R$ 17 bilhões). Em comparação ao ano anterior houve aumento de 22,7% em valor."
Farpas sino-americanas contribuem para o quadro
Segundo o MAPA, em geral, as exportações do agronegócio foram recordes para o mês de junho de 2020, com registros de vendas externas de US$ 10,17 bilhões (cerca de R$ 54,4 bilhões). Houve crescimento de 24,5% em relação às exportações de junho de 2019 (US$ 8,17 bilhões, ou cerca de R$ 43,7 bilhões, na cotação atual).
Conforme Palermo, um for fatores que influenciou o aumento das exportações do setor corresponde aos atritos entre os EUA e a China.
"A China está comprando 40% de tudo que o agronegócio exporta [...]. O conflito entre a China e os EUA está aumentando, agora por conta de Hong Kong, tecnologia e outras questões, então a China não está cumprindo o acordo [comercial] Phase One [firmado com os EUA]. E como o Brasil compete diretamente com os EUA, as exportações brasileiras acabam preenchendo a demanda chinesa."
Além disso, a China se recuperou mais rápido da pandemia e começou a aumentar as importações, principalmente, de comida, ressaltou a analista.
Lições da pandemia para o setor
Não obstante resultados positivos, a pandemia virou um papel tornassol para o agronegócio, expondo alguns pontos fracos do setor. Em entrevista à Sputnik Brasil, as analistas destacaram alguns deles.
"O maior problema gerado pela pandemia é a questão fiscal, o aumento da dívida pública. Além disso, o problema crônico do Brasil é a baixa produtividade", opinou Palermo.
De acordo com ela, a participação do comércio exterior no PIB do Brasil fica em torno de 23%, "muito abaixo da média mundial". Já o aumento dessa participação contribuiria bastante para o desempenho econômico em geral e com o desempenho do agro.
A analista reforçou que a imagem do Brasil criada no exterior à luz do aumento de desmatamento da Floresta Amazônica também contribui negativamente na questão da produtividade.
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Por sua vez, Nicole Rennó destaca que entre os principais desafios do agronegócio como um setor no Brasil, durante e após a pandemia, "tem-se a necessidade de manter o abastecimento ou a segurança alimentar da população brasileira e, também, de países importadores, de forma sustentável, e a necessidade de garantir a sanidade e a qualidade dos alimentos".
Comentando o primeiro ponto, a especialista referiu se tratando de um desafio que o agronegócio tem conseguido avançar e vencer desde ainda antes da pandemia, e continuou vencendo com as medidas de isolamento.
O segundo ponto, relacionado à questão da sanidade e da qualidade dos alimentos, está sendo "fortemente evidenciado na conjuntura atual com a COVID-19 e isso deve prevalecer de forma expressiva no pós-pandemia". Segundo Rennó, o Brasil, como grande fornecedor mundial de alimentos para vários países, já tem seguido protocolos rígidos de sanidade e de qualidade. Porém, "essa posição precisa ser mantida, reforçada e aprimorada".
A analista sugeriu que para resolver os desafios e destacar o agronegócio brasileiro para este assumir um protagonismo global, o setor, em conjunto com a sociedade e o Estado, deve buscar ampliar o processo de inovação e de modo que o acesso à tecnologia seja mais uniforme entre os agentes do setor, garantir a qualidade e a sustentabilidade do produto brasileiro e assegurar que essa qualidade seja reconhecida internacionalmente.