Além de abastecer um vasto mercado negro internacional, o Brasil importa ilegalmente uma grande quantidade de animais silvestres. O tema entrou em evidência nas últimas semanas, após um estudante ter sido picado por uma naja no Distrito Federal.
Em mais uma matéria exclusiva da série dedicada ao assunto, especialistas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) revelaram à Sputnik Brasil quais são os animais mais procurados pelo tráfico internacional, quem são seus compradores e alertaram sobre os riscos de disseminação de doenças em consequência da convivência inadequada de animais silvestres com humanos.
Segundo geógrafo, zoólogo e analista ambiental do ICMBio, Marco Freitas, a importação de animais exóticos no Brasil é um problema antigo. Ele lembra que, ainda nos anos 1990, participou de uma operação de grande porte que apreendeu animais ilegais no aeroporto de Salvador, Bahia.
"Nos anos 90 eu trabalhei, em uma situação como técnico no aeroporto de Salvador, em uma apreensão gigantesca que veio do exterior. Tinha 500 tigres-d'água dos Estados Unidos, tinha aranha caranguejeira, tinha serpente do mundo inteiro, lagartos, escorpiões. Foi uma apreensão com dois ou três mil bichos e eu trabalhei no aeroporto ajudando na identificação do material para sua melhor destinação", revelou Marco Freitas à Sputnik Brasil.
O público alvo de traficantes de animais silvestres importados no Brasil contempla todas as idades. Entre os jovens, os animais mais populares são as serpentes exóticas de fora do Brasil, bem como as espécies nativas. Apesar da "opção do bicho legal, criado em cativeiro, criadouro comercial, com microchip, com documentação", muitos optam por animais ilegais, em função do preço mais barato.
"A juventude procura muito por répteis e aranhas também, como caranguejeiras, e o pessoal mais velho, em 90% das vezes, busca por aves", explicou o zoólogo.
As categorias de pássaro mais procuradas são os de canto. Esses animais representam, segundo Freitas, quase 80% do tráfico. A segunda categoria mais requisitada é a de "pássaros ornamentais de estimação, como papagaios, periquitos, araras, tucanos e gaviões".
Combate ao tráfico
O analista da ICMBio avalia que o combate do tráfico de animais silvestres no país necessita de uma "política de fiscalização que unisse às esferas municipais, estaduais e federais". Freitas também destacou os aspectos sociais do problema.
"O Brasil é muito grande, uma extensão continental, que tem a maior biodiversidade do mundo, cinco biomas e toda a complexidade social envolvendo a questão do tráfico. A pobreza de algumas regiões do norte, nordeste, centro do centro-oeste e, principalmente, no nordeste, favorece a questão do tráfico. Dessa forma, se torna impossível a estrutura de fiscalização ser eficiente", afirmou o geógrafo.
Em conversa com Sputnik Brasil, Marco Freitas defendeu a realização de novos concursos públicos, a priorização de investimentos para o meio ambiente, e o reforço da rede de inteligência para avançar nas investigações da rede de tráfico que passa pela Internet, em redes sociais e WhatsApp. Além disso, ele destacou a importância de que "agentes públicos municipais e estaduais de fiscalização ambiental tivessem porte de arma, como preconiza a lei".
Ao analisar a cobertura dada ao tema, o zoólogo e geógrafo apontou algumas deficiências, pois a mídia "contribui, mas não soluciona o problema" se não pautar a questão de modo mais frequente.
"Eu gostaria que os temas ambientais fossem mais pautados pela mídia. Quando a mídia dá espaço para essas questões ela ajuda na consciência ambiental ou para mudar hábitos. Nenhuma pessoa pode ter uma serpente em casa quando não existe o soro em caso de uma picada. E nem ter animais exóticos e ilegais em casa. Devem ser entregues. A mídia contribui quando divulga tudo isso, pois o animal é a vítima, tanto de um comércio ilegal como de maus-tratos", concluiu.
O ambientalista Dener Giovanini, coordenador-geral da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), concorda com avaliação de Marcos Freitas.
"Brasil tem ocupado cada vez mais uma posição de destaque nesse cenário internacional como país importador. Isso se deve muito à migração do tráfico de animais silvestres para as redes sociais. As redes sociais hoje se tornaram o principal meio dos traficantes", alertou Dener Giovanini em entrevista para Sputnik Brasil.
Antes as transações ilegais eram feitas, em sua maioria, nas feiras ou por contato direto. A Internet possibilitou uma conexão dos traficantes brasileiros com os internacionais, e o Brasil passou a importar mais, principalmente animais peçonhentos, como serpentes, aranhas, escorpiões e centopeias.
"Esse foi o caso da naja, em Brasília, que para gente não foi uma novidade. A gente achava que um acidente [com picada] poderia ter acontecido bem antes, porque o número de serpentes peçonhentas nas mãos de brasileiros hoje é gigantesco", ponderou o entrevistado.
Ele revelou que brasileiros importam serpentes venenosas da África, da Austrália, do Sudoeste Asiático e "também continuamos sendo um país exportador de animais silvestres principalmente para o mercado europeu, o mercado americano, e o mercado asiático".
Animais mais exportados e tipos de tráfico
Segundo o coordenador-chefe da Renctas, todos os animais silvestres representam interesse para os traficantes. Pode se caracterizar como tráfico toda a retirada ilegal de um animal da natureza. "Existem diversas modalidades de tráfico, e para cada tipo existe um animal de maior interesse", afirmou Giovanini.
Ele destacou a grande importância do mercado Pet para o tráfico. Ou seja, de animais que são retirados da natureza para serem utilizados como animais de companhia. Uma grande parte desses animais são aves de canto como, tico-tico, azulão, trinca-ferro, coleirinho, disputadas por colecionadores e criadores.
Esse mesmo mercado também contempla aves de "grande beleza e plumagem bonita", como araras, tucanos, papagaios, "muito comuns nas casas dos brasileiros". Além disso tem os micos, tartarugas e jabutis, os macacos, especialmente os macacos-pregos, que são "uma febre hoje no Brasil, em função do seu comportamento parecido com o do humano".
O mercado Pet movimenta o maior volume de animais. O tráfico para pesquisa científica ilegal e biopirataria também é motivo de preocupações. Além disso, existe o tráfico de partes de animais, utilizadas na medicina tradicional.
"Por exemplo, na Região Norte do país pessoas utilizam a banha da jiboia para curar reumatismo. Pessoas utilizam casca de tartaruga para fazer tratamento de doença respiratória. Muitos animais são retirados da natureza para abastecer esse mercado de medicina tradicional, ou mesmo o mercado de venda de partes de animais, como dentes, ossos, garras. Hoje sabemos do aumento de interesse em felinos e onças brasileiras, que são capturadas para serem exportadas para o mercado asiático, principalmente para a China, Japão e Coreia", disse o entrevistado.
Fazendo uma estimativa de ranking dos animais mais atingidos pelo tráfico internacional no Brasil, a Renctas considera que as aves ocupam o primeiro lugar, seguidas por primatas e algumas espécies de répteis. Os animais peçonhentos viriam em terceiro e, em quarto lugar, os animais mais raros ameaçados de extinção. Essa última categoria gera grandes lucros, pois os animais são difíceis de encontrar e de se transportar.
A Renctas realizou a única pesquisa nacional sobre o tráfico de animais no Brasil, ainda em 2001. A estimativa da Renctas era de que 38 milhões animais silvestres eram retirados da natureza por ano no Brasil. Além disso, de cada dez animais retirados do seu habitat, apenas um chega ao consumidor final. Nove morrem durante a captura ou durante o transporte. Desde então, no entanto, a pesquisa nunca foi atualizada.
"Os números podem parecer altos, mas hoje, 20 anos depois, eu diria que este número é até subestimado. Durante os trabalhos da CPI sobre tráfico de animais silvestres [no Congresso Nacional] se descobriu que só de peixes ornamentais retirados da Amazônia Legal e exportados para o mercado asiático seriam 60 milhões todos os anos", avisou Giovanini.
Ele explicou que, na região amazônica, no Pará, é possível comprar um saco plástico com 100 peixes ornamentais nas comunidades ribeirinhas por R$ 2. Esse mesmo peixe, no mercado asiático, em Cingapura ou no Japão, é comercializado a U$ 50 (R$ 260) ou U$ 60 (R$ 312) a unidade.
Pandemia e saúde pública
Um outro aspecto do tráfico de animais, pouco destacado, seria o fato de que esta atividade favorece o surgimento de pandemias. Em um recente relatório, a ONU apontou para o problema, que voltou aos noticiários no Brasil. O coordenador-chefe da Renctas concorda com a importância desse alerta.
"Poucas pessoas falam, mas 70% das doenças que atingem o ser humano tem algum animal envolvido. Um animal como reservatório da doença, ou um animal como vetor. A COVID-19, que foi fruto de tráfico de animais na China, não foi a primeira doença que tomou proporções mundiais em função do comércio ilegal de animais", disse o interlocutor da Sputnik Brasil.
O ambientalista lembrou que a gripe suína, a gripe aviária, e outras doenças ao longo da história que foram consequência da "relação equivocada dos humanos com a fauna". Segundo ele, é importante lembrar que as florestas tropicais são o último reservatório de microrganismos desconhecidos da medicina.
"Toda vez que você retira um animal da natureza e traz esse animal para convivência com humanos, e esse animal não passou por nenhum tipo de controle sanitário, você pode estar trazendo uma bomba biológica para a sua casa. Você pode ser contaminado, pode contaminar sua família e seus vizinhos com uma nova doença, resultando em um gravíssimo problema para a saúde pública", concluiu.