O sistema da política externa dos EUA está se iludindo se planeja usar o conflito fronteiriço Índia-China para fazer Nova Deli hostilizar Pequim, ao mesmo tempo que o Departamento de Estado dos EUA aumenta as tensões com Pequim, diz Suvam Pal, um jornalista e autor indiano que trabalha na capital chinesa.
"É muito lamentável o que aconteceu em 15 de junho de 2020. Não vou especular de quem foi a culpa, nenhum de nós realmente sabe", diz Suvam Pal, um profissional da mídia e autor indiano vivendo em Pequim, se referindo a relatos de 20 militares indianos mortos e admitindo que o confronto prejudicou os laços bilaterais.
Pal lamentou o fato de que o maior incidente mortal em quase 40 anos coincidiu com o 70º aniversário do estabelecimento de relações diplomáticas entre a Índia e a China.
Conflitos entre os dois países
As tensões na fronteira entre a China e a Índia foram seguidas pela decisão de Nova Deli de proibir dezenas de aplicativos móveis chineses, incluindo TikTok, Weibo e WeChat, em 29 de junho, sob a Seção 69A da Lei de Tecnologia da Informação. Na segunda-feira (27), a Índia proibiu mais 47 aplicativos chineses que permitiam acessar os produtos de software anteriormente proibidos.
Suvam Pal considera que, apesar das preocupações de "segurança", a proibição imposta aos aplicativos chineses na Índia é amplamente simbólica, já que muitos indianos nem sequer as utilizam. O autor indiano lembra que Pequim, por sua vez, proibiu a maioria dos aplicativos dos EUA na parte continental.
O autor sugere que as restrições acima mencionadas atendem às aspirações do eleitorado do primeiro-ministro Narendra Modi e dos grupos nacionalistas indianos.
"Eu não acredito na lógica de alguns setores dos nacionalistas do partido governista indiano, que acreditam que esmagar a China pode realmente fazer de você um poderoso jogador global", diz o autor.
"Você não pode isolar a China no mundo de hoje. A China também não pode isolar a Índia porque ambas têm uma longa história de relações frutíferas. Os nacionalistas indianos precisam suavizar sua postura: não se pode boicotar a China. Os países precisam encontrar uma solução vantajosa para ambas as partes. Um jogo de soma zero não vai ajudar ninguém."
Quaisquer que sejam as restrições específicas que os dois países vizinhos possam impor um ao outro, eles ainda estão intimamente ligados pelas relações comerciais, pela política e pela história compartilhada, acredita Pal.
Ele observa que, independentemente das tensões latentes, nem a Índia nem a China tentaram se intrometer nos assuntos internos um do outro, com Nova Deli permanecendo em silêncio sobre as questões relativas a Hong Kong, Taiwan, Tibete e o mar do Sul da China. Nem a Índia nem a China estão interessadas em cair na "armadilha de Tucídides", em que uma potência se esforça para desfazer e substituir a outra, ressalta ele.
"Posturas agressivas desnecessárias e declarações provocatórias inúteis, tanto da Índia como da China, dificultarão o processo de reconciliação e serão sempre contraproducentes", adverte Pal.
"Em vez de jogar para a galeria, especialistas estratégicos de ambos os lados deveriam se concentrar em encontrar soluções e formas de reconciliação em vez de adicionar combustível ao fogo através de suas posturas nacionalistas e propagandistas. O que verdadeiramente se precisa é erudição."
Estratégia da Índia
Enquanto isso, a revista India Today levantou a questão se Nova Deli deveria reforçar sua presença no mar do Sul da China a fim de "frenar a China em Ladakh".
Apesar de uma aproximação política entre os EUA e a Índia, incluindo um exercício militar com navios de guerra indianos e a participação por Nova Deli do Diálogo Quadrilateral de Segurança (o Quad), um fórum estratégico informal entre os Estados Unidos, Japão, Austrália e Índia que é visto por alguns observadores como uma aliança anti-China, Suvam Pal enfatiza que a Índia continua fortemente comprometida com sua estratégia de não alinhamento.
Isso não significa que a Índia não possa manter suas parcerias estratégicas com outros países, observa ele, se referindo também à recente aquisição dos avançados sistemas de defesa antiaérea S-400 da Rússia.
"Isto não é mais uma Guerra Fria", observa Pal. "Você pode ter alianças estratégicas com a UE, as forças da OTAN, os Estados do Golfo ou a União Africana. A China e a Índia são aliados há muito tempo no BRICS e na Organização de Cooperação de Xangai (SCO, na sigla em inglês). Há alianças diferentes, dependendo das escolhas de cada um. É um mundo multipolar."
Tentativa de criação de 'baluarte'
Políticos norte-americanos, tanto da esquerda como da direita, estão apelando para quebrar a República Popular da China, com a mídia dos EUA presumindo que a Índia pode se tornar um "possível baluarte contra uma China em ascensão" e usando o conflito fronteiriço de Ladakh como oportunidade para uma maior aproximação entre Washington e Nova Deli.
Washington está muito enganado em relação a Nova Deli, caso considere que a Índia pode ser usada como uma espécie de ferramenta geopolítica contra a República Popular, ressalta Pal.
"A Índia nunca cairá nesta armadilha", diz ele. "Os EUA estão olhando para os benefícios de seus negócios e estão tentando convencer a Índia a tomar uma posição forte contra a China, mas Narendra Modi não é esse tipo de político que pode ser controlado. Ele conhece muito bem a China: ele tem visitado a China desde seus dias como ministro-chefe de Gujarat [estado no ocidente da Índia]."
"Além disso, o ministro das Relações Exteriores de Modi, Subrahmanyam Jaishankar, foi embaixador na China. Ele fala chinês e conhece a República Popular melhor do que muita gente", conta.
Segundo o jornalista, os princípios básicos da política externa indiana são "sólidos como uma rocha" e não podem ser revertidos da noite para o dia.
"Por isso, não creio que a política da Índia em relação à China passará por uma mudança drástica", conclui ele.