Aras, mesmo antes de ser escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para chefiar a PGR, fora da lista tríplice da categoria, como era o costume, criticava pontualmente a Lava Jato.
"A grande questão é saber se o procurador-geral, que me parece muitíssimo alinhado ao presidente Bolsonaro, visa realmente a correção de rumos da Lava Jato, ou um ataque mais frontal à operação", questionou Rodrigo Prando, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
Nos últimos meses o conflito entre a operação, principalmente a força-tarefa de Curitiba, e a Procuradoria-Geral aumentou, com visita da subprocuradora Lindôra Araújo à Lava Jato do Paraná, em junho, para consultar arquivos. Os integrantes da operação acusam a Procuradoria de interferência em seu trabalho, enquanto a PGR afirma que a Lava Jato deve prestar contas de sua atuação.
'Avanço civilizacional'
Segundo Prando, a Lava Jato é um "avanço civilizacional no combate à corrupção, pois conseguiu levar figuras poderosíssimas a julgamento, à condenação e à prisão", além de ter trazido "de volta ao Brasil muito dinheiro desviado de corrupção".
Apesar disso, ele avalia que existem "excessos" na atuação de seus operadores, o ex-juiz Sergio Moro e os procuradores das forças-tarefas, entre eles Deltan Dallagnol, que ficaram "muito claros" na Vaza Jato, diálogos expostos pelo site The Intercept e outros veículos de mídia.
"Em alguns momentos, a operação cometeu atos para além daquilo que se espera dos operadores do direito. Existem teóricos do direito, independentemente de coloração partidária, que apontaram esses excessos", afirmou Prando.
Lavajatismo nocivo à democracia
Ele aponta ainda a existência de um "produto cultural" da operação, o "lavajatismo", uma "crença de que juízes e procuradores estariam acima da sociedade, numa posição de pureza ética absoluta e capazes de fazer uma assepsia da sociedade brasileira, de expurgar todos os seus males, especialmente a corrupção".
Essa crença, de acordo com o cientista político, "levou a uma identificação da corrupção ao próprio exercício da politica, uma identificação incorreta, e que gera problemas enormes, inclusive aos alicerces da própria democracia".
Nesta semana, o embate entre a Lava Jato e a PGR se tornou ainda mais claro, quando, na terça-feira (28), Aras, em debate virtual promovido por grupo de advogados, disse que era preciso "corrigir rumos" da operação para que o "lavajatismo" não perdurasse.
Moro rebate Aras: 'Desconheço ilícitos na Lava Jato' https://t.co/nH9TON3Gk3 pic.twitter.com/hFoXLoOnxL
— Sputnik Brasil (@sputnik_brasil) July 29, 2020
Para Prando, a pergunta que surge é se a "fala aponta uma necessidade de correção de rumos", algo suscetível de ocorrer em "qualquer instituição republicana", e a "Lava Jato não passa longe disso" e "não pode ser uma figura com vontade e regras próprias", ou um "ataque frontal visando desestabilizar e desarticular por completo" a operação.
Aras 'revelando ao que veio'
Para o cientista político Ricardo Ismael, professor da PUC-Rio, "há uma preocupação no ar" e tudo indica que sim, a intenção de Aras é implodir a Lava Jato. Segundo ele, o procurador "agora está revelando ao que veio", e um conjunto de fatores causa dúvidas se o combate à corrupção, "questão que foi muito importante nos últimos anos", continuará priorizado pelo governo, que teve como bandeira justamente a luta contra a impunidade.
"Esse embate agora é decisivo: se prevalecer aquilo que Aras vem declarando até agora, ele está querendo tirar a independência do Ministério Público Federal, e, se assim acontecer, quem vai ser investigado vai depender da vontade do procurador-geral da República", disse o especialista, que ressalta o apoio que os dois últimos ocupantes do cargo, Raquel Dodge e Rodrigo Janot, davam à Lava Jato.
Ismael afirma ainda que uma operação da "complexidade" e "magnitude" da Lava Jato até pode ter cometido erros pontuais, mas que eles são "aperfeiçoados" com o tempo. Para o especialista, a operação "prestou relevantes serviços à população brasileira" e está em conformidade com a Constituição de 1988, atuando no "controle das demais instituições públicas e defesa da cidadania".
Reflexos no Bolsonarismo
Por outro lado, os dois especialistas concordam que o conflito entre o escolhido do presidente para a PGR e a Lava Jato provoca um racha em parte do grupo de apoio a Bolsonaro, algo que já vinha ocorrendo desde a saída de Moro do Ministério da Justiça.
Segundo Ismael, eleitores que votaram no então candidato do PSL em função de seu apoio à Lava Jato estão "decepcionados" e "preocupados".
"Bolsonaro está tendo agora que esclarecer para o seu eleitorado se o combate à corrupção vai continuar sendo uma prioridade de seu governo e do resto de seu mandato", disse o cientista político à Sputnik Brasil.
Prando também enxerga um afastamento de bolsonaristas menos "convictos" do governo, ressaltando que seus eleitores não formavam um grupo uniforme. O grupo Vem pra Rua, por exemplo, que capitaneou diversas manifestações pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, criticou a atual postura do chefe de Estado brasileiro.
"Alguns desses grupos começam a dar sinais de se afastar do presidente, por entender que essas manobras dentro do governo visam enfraquecer, paralisar e até mesmo desintegrar a operação Lava Jato", afirmou.
'Atacar legado de Moro'
Prando faz ainda uma outra análise, de que as críticas que partem da PGR à operação tenha como objetivo enfraquecer a imagem de Moro, um possível adversário de Bolsonaro nas eleições de 2022.
"Por trás dessa tentativa de correção de rumos de Aras, e de outros funcionários públicos de carreira ligados a ele, em relação à Lava Jato, tem também a tentativa de atacar a imagem e o legado de Moro e da operação", afirmou Rodrigo Prando.