Neste domingo (20), duas freiras brasileiras foram liberadas, após serem mantidas reféns por radicais islâmicos por 24 dias na região norte de Moçambique, país de fala portuguesa localizado na África Austral.
As irmãs Inês e Eliane trabalhavam como missionárias em Mocímboa da Praia, na província moçambicana de Cabo Delgado, quando grupo radical islâmico Ansar al-Sunna tomou o porto da cidade, semeando o terror entre os habitantes locais.
"O porto é um ponto estratégico de abastecimento de quase todos os distritos do norte de Cabo Delgado, por isso seria fundamental para a logística dos terroristas", afirmou o doutor em Ciência Política pela UFRGS e professor na Universidade Rovuma em Moçambique, Arcénio Francisco Cuco, à Sputnik Brasil.
Em 2019, membros do grupo moçambicano divulgaram vídeo jurando fidelidade ao Daesh (organização terrorista proibida na Rússia e demais países) e prometendo fundar um califado nessa província rica em recursos naturais e energéticos.
A tomada do porto de Mocímboa da Praia demonstra a deterioração da situação de segurança na província, sede de um dos maiores projetos de exploração de gás natural do continente africano, liderado pela empresa francesa Total.
Cabo Delgado
A província de Cabo Delgado está localizada no extremo norte de Moçambique, na fronteira com a Tanzânia.
Com cerca de três milhões de habitantes, a província conta com 53% de indivíduos que confessam a fé islâmica, contra 20% na média nacional moçambicana, apontam dados do Instituto Nacional de Estatísticas do país.
"No norte de Moçambique existe uma presença muito forte do islã", disse o conselheiro editorial da Revista África e Africanidades, Jean Gustavo Oliveira de Morais, à Sputnik Brasil.
Apesar de registrar indicadores sociais precários, Cabo Delgado é uma província rica, com abundantes minas de rubi e uma das dez maiores reservas de gás natural do mundo.
"Para compreender o que está acontecendo em Cabo Delgado, precisamos avaliar se a luta por recursos minerais influenciou para que situação chegasse ao nível que estamos vivendo", ponderou Cuco.
Palco da Guerra da Independência de Moçambique, da Guerra Civil e posteriormente devastada pelo ciclone Kenneth em 2019, a província, infelizmente, convive com a violência e é rota do tráfico internacional de drogas e armas.
"A região é uma rota importante do tráfico de drogas, na qual Moçambique serve para dificultar as investigações de autoridades policiais", explicou Morais.
"A prática é similar à dos tempos coloniais: ao invés de levar o produto [ilícito] direto pra Europa, eles dividem a rota em dois", usando Moçambique como uma espécie de entreposto.
Riquezas naturais e energéticas
Em 2010, quando foi anunciada a descoberta de reservas de gás na costa moçambicana, o Banco Mundial previu o dobro do PIB de Moçambique até 2025.
Mas o processo de concessão de exploração dos recursos a empresas estrangeiras, como a francesa Total e a norte-americana Exxon Mobile, gerou ressentimento na população local.
Carentes de mão de obra especializada, essas corporações passaram a importar funcionários de seus países-sede que, cercados por forte esquema de segurança, vivem em uma realidade paralela à da empobrecida população local.
"Moçambique fica independente em 1975, somente um ano depois, em 1976, entra de novo em uma guerra civil que durou 16 anos, tendo dizimado muitas vidas e provocado danos materiais enormes que retrocederam o crescimento econômico do país", disse Cuco.
Neste contexto, ideias radicais islâmicas se propagaram em Cabo Delgado, com vistas a aliciar jovens com pouca perspectiva de futuro.
"A precarização da vida das pessoas [propicia] que sejam facilmente aliciadas para fazerem parte de grupos [radicais], que oferecem recompensas muito grandes para quem participa desses atos", lamentou Cuco.
Grupos islâmicos, utilizando armas e uniformes roubados do Exército e da Polícia moçambicana, estão semeando o terror entre a população, queimando vilas inteiras e assassinando seus habitantes.
Mais de 345 mil pessoas fugiram de Cabo Delgado e estão deslocadas em Moçambique, informou o Escritório das Nações Unidas para Coordenação de Assuntos Humanitários, em 15 de setembro de 2020.
"Estou agora em Nampula, onde centros de acolhimento recebem pessoas de Cabo Delgado, que está a vivenciar nesse momento situações de terror", relatou Cuco.
O modo de operação do grupo sugere que o objetivo da violência seja expulsar os habitantes da província, a fim de construir um "califado" religioso.
Para atingir seu objetivo, os grupos incitam o ódio ao grupo étnico Macondes, do qual o presidente moçambicano, Filipe Nyusi, faz parte.
Afiliação ao Daesh?
Apesar de o grupo moçambicano ter jurado fidelidade ao Daesh, grupo radical islâmico que ganhou notoriedade por sua atuação na Síria e no Iraque, são poucos os indícios que confirmam a ligação entre os grupos.
O Daesh tem participação ativa no continente africano, principalmente fornecendo apoio a grupos como Al-Shabab, que atua na Somália, e ao Boko Haram, na Nigéria.
Mas a alegada parceria entre os grupos não parece se materializar em novos armamentos e estratégias para os grupos moçambicanos.
No entanto, a aliança favorece a propaganda de ambos os grupos: para o Daesh, passa a ideia de que o grupo estende o seu alcance, e, aos grupos moçambicanos, garante aura de legitimidade internacional aos seus atos.
"Na minha opinião, ainda não podemos associar a situação de Cabo Delgado ao terrorismo internacional", acredita Cuco. "Precisamos nos perguntar o que estaria por detrás disso."
Para Cuco, a "religião islâmica pode estar sendo instrumentalizada" na região.
"As pessoas compram com muita facilidade a ideia de que a religião islâmica está relacionada ao terror [...]. Mas Moçambique não tem experiência de lutas ligadas a questões religiosas. Então por que teria agora?", questionou o cientista político.
"É importante questionar se as disputas por recursos minerais e energéticos de Moçambique não teriam nenhuma relação com o que está acontecendo em Cabo Delgado", alertou Cuco.
Interferência estrangeira?
O governo moçambicano terá dificuldades financeiras e militares de lidar com a situação da província sem ajuda internacional.
"Moçambique é membro da SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral], que possui órgão de cooperação em política, segurança e defesa, desde 1996. Além disso, há um acordo de cooperação em segurança marítima com a África do Sul e a Tanzânia", disse o professor da Escola Superior de Guerra (ESG), Danilo Marcondes.
País particularmente interessado em controlar a propagação de grupos radicais em Cabo Delgado é a vizinha de população majoritariamente muçulmana Tanzânia.
No entanto, "é preciso que as iniciativas internacionais de apoio respeitem a soberania do Estado moçambicano [...] e que tenham efeito positivo na melhoria das condições de vida da população local", acredita Marcondes.
"Moçambique agora preside a SADC, mas há um silêncio inquietante desses países", relatou Cuco. "Não há uma ideia clara do que eles pretendem fazer para ajudar Moçambique a combater o terror."
Brasil em Moçambique
De acordo com dados do Ministério das Relações Exteriores do Brasil cerca de três mil brasileiros vivem atualmente em Moçambique.
"O Brasil é um dos países com maior influência cultural em Moçambique", contou Morais. "Mas a presença do capital e o peso político também são muito grandes."
Segundo Marcondes, o "Brasil participou com tropas de missão de paz das Nações Unidas em Moçambique (ONUMOZ) na década de 90".
Até hoje, Brasília "recebe militares moçambicanos nas suas academias [...] militares e fornece instrutores para as instituições de defesa moçambicanas", detalhou Marcondes.
Para ele, as "autoridades brasileiras acompanham as questões relacionadas à segurança dos brasileiros residentes em Moçambique".
Mas Cuco lamenta a falta de informações oficiais sobre o conflito em Cabo Delgado.
"Oficialmente, não se sabe nada sobre o que está acontecendo na província", disse. "Vamos pagar o preço do nosso silêncio, porque quanto mais as pessoas são informadas, melhor podem se preparar para determinadas situações."
Para ele, a falta de informações contribui para a propagação da narrativa de que o conflito está ligado a questões religiosas, e não à disputa por recursos naturais moçambicanos.
"O sociólogo moçambicano Elísio Macamo diz que algumas palavras falam por si só [...] por isso, bastou dizer que é terrorismo islâmico e ponto final: ninguém quer saber mais nada sobre o assunto", lamentou.
"Mas penso que, no caso de Moçambique, precisamos fazer mais perguntas sobre o que está acontecendo em Cabo Delgado", concluiu o cientista político.
Em 11 de agosto, grupo radical chamado Ansar al-Sunna capturou o porto de Mocímboa da Praia, considerado ponto estratégico para a província de Cabo Delgado. Na ocasião, duas freiras brasileiras foram feitas reféns pelo grupo radical islâmico. Elas foram liberadas neste domingo (20), e se encontram sob cuidados em lugar não divulgado por questões de segurança.