A popularidade de Jair Bolsonaro nunca esteve tão alta como nos últimos meses, mesmo com o Brasil entre os países que mais foram atingidos pela pandemia da COVID-19. O crescimento na aprovação do presidente vem sendo atribuído ao pagamento do auxílio emergencial durante o período, que aumentou consideravelmente a renda de uma parcela relevante da população brasileira.
Diante do sucesso, o governo federal pôs em marcha planos para criar um programa permanente de transferência de renda. Inicialmente, o projeto foi batizado de Renda Brasil, mas foi cancelado após discordâncias do presidente com as estratégias de financiamento do programa elaboradas pelo Ministério da Economia de Paulo Guedes, que previam cortes em programas sociais como o Farmácia Popular.
Apesar disso, não demorou muito para que Bolsonaro, na segunda-feira (28), anunciasse a criação do Renda Cidadã, que nos moldes do Renda Brasil, terá como intuito substituir o Bolsa Família. Algo semelhante já ocorreu com outro programa herdado dos governos petistas, o Minha Casa, Minha Vida, que foi substituído pelo Casa Verde Amarela em agosto deste ano.
Mayra Goulart, cientista política, professora e coordenadora do Laboratório de Partidos, Eleições e Política Comparada (Labcom) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avalia que no contexto do novo programa está também a diminuição do auxílio emergencial, o que pode ter um impacto sobre a popularidade do governo.
"É claro que desembolsos dessa magnitude [...] vão ter impactos nas eleições. É claro que quem se associar a esses auxílios emergenciais agora nas eleições municipais, vai conseguir alavancar sua popularidade, isso é isento de dúvida. A questão é quanto tempo que isso vai se prorrogar havendo uma diminuição no valor médio desembolsado, que era de R$ 600 e foi para R$ 300. Esse impacto, se as pessoas vão se sentir ganhando R$ 300 ou perdendo R$ 600, é o que a gente vai ver nessas eleições", diz a pesquisadora em entrevista à Sputnik Brasil.
"Não acho que isso vá acontecer, porque é um governo que tem popularidade e tem cada vez mais o apoio Legislativo, uma vez que ele está abrindo espaço progressivo para o 'Centrão' através da cooptação, distribuição de cargos – aquele velho mecanismo do presidencialismo de coalizão -, ele se resguarda de eventuais processos de impeachment, porque eles não vão ser bem-sucedidos no caso de um governo que tem popularidade na sociedade, mas também tem respaldo no Legislativo", afirma.
Em nota recebida pela Sputnik Brasil, a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) se posicionou contra a retirada de verbas destinadas ao pagamento de precatórios e do Fundeb para financiar o programa Renda Cidadã, propondo que o governo crie tributos sobre os mais ricos para financiar o projeto.
"As possibilidades aventadas pelo Governo Federal penalizam as crianças das famílias pobres, cortando a verba destinada para a educação básica, e promovem calotes no pagamento de dívidas", diz a nota.
Uma proposta semelhante também foi apresentada pela Rede Brasileira de Renda Básica, que se posicionou contra o programa de Bolsonaro afirmando que o financiamento deve vir de mudanças na carga tributária, mas também da revisão do teto de gastos.
"O financiamento da Renda Básica deve se dar por meio da reorganização da carga tributária, para que se torne mais progressiva. Não deve ser interditada a possibilidade de revisão do teto de gastos, aprovado em um cenário anterior à crise que vivemos atualmente. Sem rever o teto de gastos, mesmo uma nova arrecadação seria sem efeito. Por isso, o governo tem tentado tirar verbas de outros programas sociais. Antes, eliminando o abono salarial e programas destinados aos mais pobres; agora, diminuindo a verba da educação. É impossível financiar uma renda básica permanente sem rever o teto de gastos", diz a declaração.
Diante das críticas, o governo já admite buscar "outras fontes" para financiar o programa, conforme publicou o portal G1.
Renda Cidadã segue rumo de reorganização da base bolsonarista
A professora Mayra Goulart, que também integra o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em análise mais detalhada, afirma que a base de apoio de Bolsonaro foi aglutinada através de um antagonismo retórico entre os chamados "cidadãos de bem" e os "corruptos", além de um discurso neoliberal.
"O antipetismo, a ideia de corrupção, sempre contrário, sempre como uma ameaça ao cidadão de bem, foi a forma - no sentido mesmo de forma versus conteúdo – que o populismo bolsonarista encontrou para aglutinar, articular segmentos sociais distintos formando sua base de apoio originária", aponta.
A cientista política detalha ainda quais são esses segmentos aglutinados e qual é a essência do discurso político que teria insuflado certo ressentimento entre esses grupos sociais.
"Esses segmentos são classes médias e classes populares ressentidas com aqueles que de algum modo foram favorecidos pelo Bolsa Família. Mesmo quem foi favorecido pelo Bolsa Família acaba ressentido com a ideia de que você está sendo privilegiado, favorecido, versus aquele que foi o self-made man - esse discurso meritocrático daquele que batalhou. [Nesse discurso] o cidadão de bem, por ele ser bom, só por ele batalhar, se não tivesse nenhum corrupto, nenhum bandido, ele chegaria lá. Então essa fraseologia aglutinou camadas populares a essa base de apoio", avalia, acrescentando que às elites Bolsonaro apresentou um discurso neoliberal.
Para Mayra, ao longo da pandemia, Bolsonaro perdeu apoio de parte dessas camadas sociais aglutinadas sob o discurso anterior contra a corrupção e neoliberal.
"A pandemia trouxe logo de cara um imperativo de aumento de gastos por parte do governo, o que fustigou o apoio desses segmentos das elites financeiras e neoliberais. Associado a isso, o discurso negacionista do Bolsonaro e a ruptura com o [ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio] Moro, levou a um desembarque do lavajatismo", afirma, acrescentando que esse grupo, apesar do antipetismo, se sente desconfortável com o discurso negacionista do presidente.
Diante dessa situação, Goulart avalia que Bolsonaro lançou uma contra-ofensiva e acenou pela primeira vez em sua carreira política às camadas populares de forma significativa com os programas de transferência de renda, como o auxílio emergencial e agora o Renda Cidadã.
"Depois desses dois desfalques, desses dois desembarques, houve uma contra-ofensiva do governo. Essa contra-ofensiva se deu a partir do auxílio emergencial, desses programas de transferência de renda que permitiram, muito mais do que uma compensação, uma expansão dos indicadores de popularidade do governo por meio das conquistas das classes populares que, como a gente viu nas nossas pesquisas no Labcom, são grandes ausentes de toda a trajetória política e legislativa do Bolsonaro", aponta.