No fim de setembro, apoiadores do líder da oposição venezuelana e autoproclamado presidente interino, Juan Guaidó, anunciaram que fariam um trabalho de "consulado itinerante" no Brasil que deve ter início ao longo desta semana em Roraima, conforme publicou o jornal Folha de São Paulo.
Em resposta, o ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Jorge Arreaza, publicou um comunicado oficial alertando a comunidade internacional contra "atividades fraudulentas de suposta natureza consular" cometidas por pessoas que "procuram usurpar o legítimo serviço consular venezuelano".
A iniciativa no Brasil dos apoiadores de Guaidó dá sequência a um contexto de enfrentamentos entre o atual governo brasileiro e os representantes do governo do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. No início de setembro, o Itamaraty declarou os diplomatas venezuelanos como "personae non gratae" após ter fixado, em abril, um prazo para que deixassem o país - o que não ocorreu devido a uma decisão posterior do Supremo Tribunal Federal (STF).
Para Wagner Menezes, presidente da Academia Brasileira de Direito Internacional e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), essas medidas estão previstas como formas de retaliação nas relações internacionais.
"Essas ações representam um procedimento, um mecanismo coercitivo de solução de controvérsias, pelo qual um Estado manifesta seu desagrado em relação aos atos de um outro Estado. Isso é previsto no costume internacional, já é resultado de uma prática do costume internacional e também nas convenções de Viena sobre relações diplomáticas", explica o pesquisador em entrevista à Sputnik Brasil.
Menezes, porém, recorda que, do ponto de vista jurídico, a questão internacional venezuelana tornou-se uma "encruzilhada". O pesquisador recorda que no âmbito regional, segundo a Convenção de Montevidéu, um Estado é constituído por povo, território, governo e a capacidade de relações diplomáticas com outros Estados, e que nenhum governo tem a prerrogativa de apontar a legitimidade de outro.
"Especificamente no [caso do] governo, não cabe nenhuma emissão de juízo de qualquer país que seja, à luz do direito internacional, dos princípios da Carta das Nações Unidas, que no Artigo 2 fala sobre autodeterminação dos povos e princípio da não intervenção. Na resolução sobre relações amistosas entre Estados no plano internacional também existe a reafirmação desses dispositivos, bem como na Carta da OEA [Organização dos Estados Americanos]", explica.
O pesquisador recorda que mesmo sob esses princípios comuns, países da OEA, como Brasil, Chile e os Estados Unidos, reconheceram Guaidó como presidente interino da Venezuela.
"Recentemente nós tivemos um caso, e esse caso está sendo discutido, em que o Juan Guaidó pedia o bloqueio a um banco inglês do tesouro guardado em nome da Venezuela, e o Maduro pedia a liberação desse tesouro. Isso está sub judice, vai ser discutido, porque justamente, atendendo a um pedido de Juan Guaidó, alguns Estados reconheceram o governo dele como legítimo. Mas reforço, não cabe, e isso gera uma série de problemas políticos de ordem interna. Não cabe a nenhum Estado reconhecer o governo de um país ou de outro", aponta.
Menezes recorda que algo semelhante ocorreu com Cuba na década de 1960, quando o governo cubano foi excluído da OEA, mas o Estado permaneceu membro, o que o especialista classificou como um "remendo". Para o professor, o melhor que governo brasileiro pode fazer no caso venezuelano é manter um posicionamento equidistante e "deixar que a Venezuela resolva os próprios problemas".
Apesar de apontar a contradição no posicionamento dos Estados que declararam apoio a Guaidó, Menezes reconhece que pessoalmente não gostaria que o Brasil voltasse a ter relações diplomáticas com o governo Maduro, mas que cuidasse dos próprios problemas internos.
"Sinceramente eu não torço para que o Brasil retome as relações com o governo Maduro, embora seja algo absolutamente legítimo porque, bem ou mal, ele sagrou-se presidente nas urnas. Eu gostaria, na essência, que o governo brasileiro cuidasse dos seus próprios problemas e tivesse uma posição como sempre teve, de condução diplomática de relações mais propositivas, no sentido de - e aí sim seria uma posição coincidente com as posições brasileiras – promover, de oferecer seus bons ofícios como um mecanismo pacífico de solução de controvérsias para que os dois lados possam chegar a um acordo definitivo", avalia.
Menezes afirma que o que realmente interessa para a região é que a Venezuela prospere e saia da atual crise, seja com um governo de esquerda ou de direita.
Influência dos EUA e princípios constitucionais brasileiros
Desde que Juan Guaidó se autoproclamou presidente interino da Venezuela, seu principal apoiador internacional tem sido o governo do presidente norte-americano Donald Trump. Guaidó esteve mais de uma vez nos EUA desde então e foi figura de destaque no mais recente discurso anual de Trump no Congresso dos EUA.
Recentemente, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, visitou os países vizinhos da Venezuela para buscar apoio contra Maduro em meio à campanha de reeleição de Donald Trump. Durante essas viagens, Pompeo foi recebido no Brasil pelo chanceler Ernesto Araújo, em um ato que dá sequência ao apoio brasileiro à política internacional dos EUA. Para Wagner Menezes a posição do Brasil tem forte influência de Washington.
"Foram violados dispositivos constitucionais com a promoção desse ato do Mike Pompeo em Roraima, em uma atitude clara de provocação e de um discurso vazio de provocação do Estado venezuelano. É importante que o Brasil mantenha a sua independência, mantenha a sua integridade e não se esqueça dos preceitos da ordem constitucional", afirma.
Menezes recorda que a Constituição do Brasil prega a busca por soluções pacíficas e auxílio à integração regional como um espaço de entendimento. Para ele, o Brasil deve trabalhar por uma América do Sul unida e acredita que isso evitaria, por exemplo, repercussões como a migração venezuelana para o Brasil motivada por um contexto de crise econômica interna.
"O mais importante, e o que deve guiar a política externa do Brasil, é um ambiente pacífico, um ambiente histórico, resgatando desde os ideais de 1826 plantados por Simon Bolívar, que não tem nada a ver com o pensamento bolivariano de Hugo Chávez, mas um pensamento de união, de colaboração, de cooperação e de solidariedade entre os povos latino-americanos. Era isso que eu gostaria de assistir por parte do governo brasileiro", conclui.