Os longos discursos e o comportamento aparentemente errático do presidente dos EUA, Donald Trump, na semana passada, após o tratamento experimental contra a COVID-19, renovaram, relata o jornal New York Times, um debate acalorado entre especialistas em segurança nacional sobre se é a hora de aposentar uma das primeiras invenções da Guerra Fria: a autoridade irrestrita do presidente para lançar armas nucleares.
Os críticos de Trump há muito questionam se as declarações e contradições imprevisíveis do presidente norte-americano representam um perigo nuclear. Mas as preocupações levantadas na semana passada foram um pouco diferentes: um presidente tomando drogas que alteram o humor poderia ser capaz de determinar se um alerta nuclear é um alarme falso?
Dexametosa e o presidente
Na semana passada, em entrevistas a veículos de comunicação norte-americanos, Trump afirmou que não estava mais tomando medicamentos experimentais, mas ainda tomava dexametasona, que os médicos garantem que pode produzir euforia, explosões de energia e até mesmo uma sensação de invulnerabilidade. Na sexta-feira (9), Trump disse à Fox News que tinha parado de tomar o medicamento, após pelo menos uma semana de uso de dexametasona.
"A história de ofuscar a condição médica de presidentes é tão antiga quanto a República […]. O problema aqui é que a dex [abreviação de dexametasona] pode torná-lo paranoico e delirante", explica ao New York Times Vipin Narang, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, EUA que estudou a cadeia de comando e controle nuclear.
"Não sabemos quanto ele recebeu [da droga] […]. E se ele der uma ordem no meio da noite e ninguém estiver lá para detê-lo, dependemos de seu assessor militar para não transmitir a ordem ou do oficial de serviço no centro de comando militar nacional para impedi-la", acrescenta o especialista.
Ninguém sabe exatamente como as drogas administradas a Trump interagem. E, de acordo com os cientistas ouvidos pelo jornal norte-americano, as melhorias de humor mais comuns associadas à dexametasona são a mania e a hipomania, um estado de euforia. As características da hipomania incluem autoestima inflada, aumento da tagarelice, diminuição da necessidade de dormir, pensamentos acelerados, distração e ausência de restrição para se envolver em atividades que poderiam causar danos pessoais.
Autoridade única
"O último dedo que eu gostaria de ver no botão nuclear é o de um presidente sobre [o efeito de] drogas", confessou Hans M. Kristensen, diretor do Projeto de Informação Nuclear da Federação de Cientistas Americanos, um grupo privado de Washington, ao New York Times.
A tradição da autoridade única é incomum entre as nove potências nucleares do mundo. Até mesmo a Rússia exige que dois em cada três funcionários designados assinem um lançamento nuclear, reforça a mídia.
Embora a Constituição dos EUA diga que apenas o Congresso pode declarar guerra, a velocidade dos bombardeiros e mísseis deixou claro durante a Guerra Fria que não haveria tempo para convocar o Congresso ou montar uma defesa. Como resultado, o Congresso começou a delegar ao presidente norte-americano todos os poderes para usar armas nucleares durante a administração de Harry S. Truman, de 1945 a 1953. Truman é o único presidente norte-americano que ordenou um ataque nuclear.
Peter D. Zimmerman, físico e ex-cientista de armas do governo norte-americano, afirmou à mídia que poucas coisas ilustram melhor a natureza confusa do esforço dos EUA para impedir que um único indivíduo lance um ataque nuclear do que a "regra dos dois homens" em silos nucleares, submarinos, bombardeiros e o complexo atômico de costa a costa do país.
A regra exige a presença de duas pessoas autorizadas para qualquer etapa que envolva o acesso aos armamentos ou o lançamento de um ataque nuclear. Mas não se aplica ao presidente, seja no Salão Oval da Casa Branca, seja no hospital Walter Reed Army Medical Center, em Maryland, onde Trump esteve internado.