Durante o segundo semestre de 2020, negociadores de Rússia e EUA se engajaram em diplomacia frenética para tentar estender o último acordo que limita o número de armas nucleares estratégicas no mundo, o acordo Novo START.
Assinado em abril de 2010 entre os então presidentes dos EUA e Rússia, Barack Obama e Dmitry Medvedev, o acordo estipula que cada parte limite o número de ogivas nucleares estratégicas instaladas a 1.550.
O acordo também limita o número de mísseis balísticos intercontinentais nucleares, mísseis balísticos baseados em submarinos e bombardeiros estratégicos.
Caso não seja prorrogado ou substituído por um novo acordo, o Novo START irá perder a validade em fevereiro de 2021.
"O Novo START é o último acordo que restringe armamentos nucleares estratégicos norte-americanos e russos", disse o pesquisador sênior do Instituto de Relações Internacionais de Moscou (MGIMO, na sigla em russo) Andrey Baklitsky à Sputnik Brasil.
Segundo o especialista, o acordo estabeleceu mecanismos de controle muito valiosos do ponto de vista da diplomacia:
"No acordo tem tudo: inspeções, sistemas de alerta, mecanismos de troca de informações, visitas mútuas. Por isso é um instrumento confiável [...] que se provou muito eficaz", validou Baklitsky.
"Durante todos esses anos as partes não se acusaram mutuamente de ter cometido violações [...] apesar de a Rússia ter levantado dúvidas sobre como os EUA modificaram seus bombardeiros pesados e instalaram mísseis balísticos a submarinos", disse.
O texto do Novo START permite sua prorrogação automática por mais cinco anos. Nesse período, as partes podem negociar acordos mais abrangentes que incluam novos tipos de armamentos, como os hipersônicos.
"A negociação de acordos sobre estabilidade estratégica podem abranger um amplo espectro de temas, como sistemas antimísseis, [posicionamento de armas no] espaço e, para os americanos, as armas táticas, sobre os quais é perfeitamente possível atingir um consenso. Mas são negociações longas e complexas", advertiu Baklitsky.
"Paralelamente a isso, temos a questão da perda de validade do acordo Novo START", que trata especificamente de armas nucleares estratégicas, isto é, com alto poder de destruição e destinadas a atingir alvos longínquos.
Segundo Baklitsky, a administração Trump tenta condicionar a extensão do Novo START à negociação de um novo acordo, que incluiria, por exemplo, as armas nucleares táticas.
"O melhor e mais racional seria simplesmente estender o acordo", acredita Baklitsky. "Mas a administração Trump decidiu [...] usar a não extensão do acordo Novo START como uma moeda de troca para forçar a Rússia a negociar sobre temas que ela não quer negociar."
"A Rússia já deixou claro que simplesmente que não vai negociar nessas condições", disse o especialista em não proliferação nuclear.
O que querem os EUA?
No início do processo negociador, muitos analistas duvidavam da disposição da administração Trump em negociar a prorrogação do Novo START.
Ao retirar os EUA de acordos como o Tratado INF, o Tratado de Céus Abertos e mesmo do acordo nuclear iraniano, a administração havia dado provas de que não se interessava em controle de armamentos.
Desta forma, os EUA impuseram condições bastante difíceis de serem atendidas durante as negociações sobre a prorrogação do Novo START.
Primeiro, Washington demandou que Moscou convencesse a China a sentar na mesa de negociações e integrar um novo acordo de limitação de armas nucleares estratégicas.
Não ficou claro como a China poderia ser incluída, uma vez que, segundo o Instituto Internacional de Pesquisa sobre a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês), Pequim tem um arsenal nuclear estimado em 290 ogivas, comparado com 6.185 ogivas de Washington e 6.500 de Moscou.
"A China rejeitou ser incluída diretamente no acordo, mas discute-se a possibilidade de que, eventualmente, a China entre em negociações desse tipo", revelou o especialista. "Mas neste momento não há nenhum diálogo direto [com Pequim]."
Washington ainda demanda que a Rússia negocie mecanismos de controle de armas nucleares táticas, que têm menor alcance e poder de destruição do que as estratégicas.
"Os americanos sempre tiveram muito interesse nas armas nucleares táticas da Rússia", cujo controle não está previsto no Novo START.
Moscou insiste que um diálogo sobre esse tipo de armas deveria incluir a OTAN, que mantém esse tipo de armas estacionadas na Europa, e os sistemas antimísseis da aliança.
Eleições nos EUA
Conforme as eleições presidenciais se aproximam e a vantagem do candidato do Partido Democrata, Joe Biden, sobre o atual presidente, Donald Trump, aumenta, a posição norte-americana se modifica.
"A administração Trump queria estender o Novo START até as eleições, para poder mostrar um trunfo diplomático durante a campanha", disse Baklitsky.
Nesse contexto, o presidente Vladimir Putin, que defendia a prorrogação do acordo por cinco anos, ofereceu a Washington a extensão do acordo por um ano, sem precondições.
Washington recusou a oferta, dizendo que seria necessário que as partes congelassem seus arsenais nucleares durante o período de extensão do acordo.
"A proposta de Putin de estender o Novo START sem congelamento [do número] de ogivas nucleares não é um ponto de partida", disse o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O'Brien.
Para Baklitsky, a "extensão do acordo como está hoje não é uma vitória que a administração Trump possa propagandear na televisão".
Por outro lado, o candidato da oposição, Joe Biden, disse estar pronto para estender o acordo sem precondições por um ano.
"O candidato Biden declarou publicamente estar pronto para estender o Novo START ou firmar um novo acordo de controle de armas estratégicas, e isso é um elemento crucial", disse o presidente russo, Vladimir Putin, durante entrevista ao canal Rossiya, em 7 de outubro.
Além disso, uma administração democrata provavelmente não irá condicionar a extensão do acordo à introdução do controle de armas nucleares táticas.
"Biden e os quadros do Partido Democrata têm a compreensão de que [armas estratégicas e armas táticas] são duas classes diferentes de armamentos que devem ser reguladas por tratados diferentes", disse Baklitsky.
No entanto, aguardar a posse de uma possível administração Biden para definir os rumos do controle de armas nucleares pode ser um movimento arriscado.
"O problema é que o acordo perde a validade em 3 de fevereiro, e Biden, caso ganhe, tomará posse mais ou menos no dia 13 de janeiro, o que nos garante somente duas semanas para estender o acordo", ponderou o especialista. "Isso é tecnicamente possível, mas com certeza seria um período muito estressante."
"Por isso, com certeza seria melhor estender o acordo ainda durante a presidência de Donald Trump", concluiu o Baklitsky.
Nesta terça-feira (20), o Ministério das Relações Exteriores da Rússia apresentou nova proposta, na qual aceita o congelamento dos arsenais nucleares mútuos e prorrogação do Novo START por um ano.
O Departamento de Estado dos EUA solicitou nova reunião entre os negociadores para debater a proposta. Para seguir em frente, as partes devem definir mecanismos de controle do congelamento dos arsenais e a definição de "ogiva nuclear".
A extensão do acordo Novo START está sendo negociada por Rússia e EUA em rodadas nas cidades de Genebra, Viena e Helsinque. A delegação norte-americana é chefiada pelo enviado especial para Controle de Armas dos EUA, Marshall Billingslea, e a russa pelo vice-ministro das Relações Exteriores, Sergei Ryabkov.