O estado do Amapá vive um blecaute que já dura sete dias em pelo menos 13 de seus 16 municípios, desde que uma subestação de energia pegou fogo na capital Macapá na última terça-feira (3), o que trouxe sérios problemas para a execução dos serviços de saúde e a operação das estações de tratamento de água e das comunicações no estado.
No dia 7, após cinco dias de apagão, a luz começou a voltar em alguns bairros da capital e o governo estadual comunicou que haveria um rodízio em turnos de seis horas no fornecimento da eletricidade. A distribuição parcial de energia foi viabilizada após a conclusão dos reparos na subestação localizada em Macapá.
A Companhia de Eletricidade do Amapá divulgou neste domingo (8) cronograma com o rodízio de fornecimento de energia nas cidades do estado atingidas por um apagão https://t.co/SU7GiRigS3
— Sputnik Brasil (@sputnik_brasil) November 8, 2020
Para tratar do blecaute no Amapá, que já é o mais longo no país desde o grande apagão de 1999, a Sputnik Brasil conversou com José Antonio Feijó de Melo, engenheiro eletricista, ex-diretor de Operações da Companhia Energética de Pernambuco (CELPE), chefe de Gabinete da Presidência da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF) e autor do livro "O setor elétrico brasileiro: de serviço público a mercadoria: vinte anos de erros (1995-2015)".
Ao ser perguntado sobre como vê a atuação das autoridades diante do incidente no Amapá, Feijó acredita que o governo federal tem uma margem de manobra muito pequena, pois não possui nenhum instrumento efetivo e prático de ação sobre a realidade do setor elétrico, apenas do ponto de vista institucional.
"A rigor, o sistema elétrico está nas mãos da iniciativa privada, e as empresas, mesmo operando de acordo com o que as instituições determinam, atuam dentro de uma filosofia de que o principal é faturar. A segurança das coisas, a garantia do suprimento, embora elas existam e os órgãos do governo procurem fazê-las valer, são exercidas da mínima forma possível na prática", afirma o engenheiro.
O especialista assinala que, no Amapá, uma única subestação controla praticamente a totalidade da energia do estado, e não possui nenhuma alternativa, o que deixa a população refém desse único ponto de distribuição de energia.
"Se acontece um incêndio, como ocorreu, acaba a energia, que só depois de muito trabalho será restabelecida. É necessário que o estado tenha pelo menos dois pontos para o recebimento de energia do sistema geral interligado para se sustentar. Além disso, é preciso que, dentro dessa subestação, existam equipamentos em quantidades suficientes para que, caso haja um defeito, ela possa se sustentar", opina Feijó.
O ex-diretor de Operações da CELPE acredita que é necessário um segundo ponto de distribuição para que o estado não fique à mercê de acontecimentos como o que causou o apagão. De acordo com as informações oficiais, o incêndio foi provocado por uma descarga atmosférica, que é um fenômeno natural bastante comum.
"O Amapá é um estado pequeno, onde há um consumo relativamente pequeno. Quando se tem a carga total, estimou-se que uma única subestação seria suficiente para atender à demanda. Ela até pode atender à carga, mas não atende aos requisitos de segurança, então seriam necessárias duas subestações para que o estado não dependesse de um único caminho que, falhando, o deixaria praticamente inteiro sem energia", comenta o ex-diretor de Operações da CELPE.
Para Feijó, o fato de não existir uma segunda subestação revela uma falha de planejamento, provavelmente decorrente das condições econômicas, "para baratear os custos", pois uma segunda subestação encareceria o custo total de investimento e, consequentemente, da energia.
"O sistema elétrico brasileiro deveria ser planejado de forma robusta. Mas, ultimamente, com a prevalência das privatizações, essa robustez fica, às vezes, comprometida por alguma circunstância anormal e pela própria presença da empresa privada que está, em geral, procurando um objetivo que não é o de prestar serviço, mas ganhar dinheiro para assegurar dividendos aos acionistas", afirma José Antonio.
O especialista acredita que, em uma situação normal, a empresa deveria ter condições de enfrentar as dificuldades e promover os reparos. No entanto, isso não ocorreu no Amapá, pois o pessoal do próprio governo, a Eletronorte e a Eletrobras, precisou ser acionado para assumir e promover todas as atividades. "Essa função, a rigor, não cabia ao governo", comenta.
O modelo de concessões
No Brasil, o sistema de transmissão desempenha um papel muito importante, pois trata-se de um país continental, que depende de uma infraestrutura extensa e complexa, capaz de transportar grandes blocos de energia por grandes distâncias. Até os anos 1990, poucas empresas atuavam no setor de transmissão. No entanto, a partir do governo FHC, a expansão da malha de transmissão do país passou a ser feita principalmente por empreendimentos privados.
José Antonio crê que o modelo de concessões adotado atualmente no Brasil está muito errado. Para o especialista o governo não deveria entregar o comando real e efetivo do setor elétrico à iniciativa privada.
"A Constituição do país estabelece que a energia elétrica é um serviço público considerado essencial a ser prestado unicamente pela União. Mas também diz que a União poderá fazê-lo diretamente ou através de terceiros mediante concessão. Mas não pode ser o todo, pois o governo perde o comando e a capacidade de realmente garantir energia elétrica nas condições adequadas para o desenvolvimento do país", comenta.
Para Feijó, as empresas deveriam se submeter a tarifas que fossem justas para manter o seu funcionamento e para o interesse da população e dos setores produtivos. Contudo, quando a iniciativa privada entra no setor elétrico com a condição de ter o comando e fazer as coisas segundo os seus interesses, acontece o que vemos no Brasil atualmente, uma energia cara e um sistema inseguro.
"O brasileiro paga muito caro pela energia e isso não faz sentido, apenas para os negócios do setor elétrico, pois suas empresas têm uma rentabilidade que só é inferior à dos bancos no país. Isso não é viável em lugar nenhum, pois a energia elétrica é um insumo essencial, que tem influência em toda a cadeia produtiva e de serviços. O Brasil caiu em uma armadilha", conclui.