A apuração dos votos das eleições norte-americanas, apesar de vagarosa e confusa para muitos brasileiros, não deixa dúvida de que o candidato do Partido Democrata, Joe Biden, será o novo ocupante da Casa Branca.
O manejo displicente da pandemia, a política externa errática e a retórica desconcertante são algumas das críticas que especialistas a Trump apontam como possíveis causas para sua derrota.
De fato, Trump é o primeiro presidente republicano desde George H. Bush a não se reeleger para um segundo mandato. Fora da Casa Branca, o ex-presidente ainda terá que enfrentar processos judiciais e problemas com o fisco norte-americano.
Mas esse cenário desfavorável a Donald Trump não reflete o posicionamento favorável que o trumpismo atingiu nos EUA.
Apesar de ter perdido a Casa Branca, o partido do presidente manteve sua maioria no Senado. A Câmara baixa continua a ser reduto democrata, mas os republicanos diminuíram a sua desvantagem em seis cadeiras.
"A tão aguardada 'onda azul' não veio", disse o professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutor em Ciência Política pela UNICAMP, Filipe Mendonça, à Sputnik Brasil.
Para o pesquisador do Instituto Nacional para Estudos sobre os Estados Unidos (INEU), o movimento que se convencionou chamar de trumpismo demonstrou força nas eleições norte-americanas.
"Mesmo com a derrota de Trump, o trumpismo não foi superado nesta eleição. Longe disso, pode ter saído fortalecido", acredita o pesquisador.
"Em 2016 havia a hipótese de que [o trumpismo] pudesse ser passageiro", disse Mendonça. "Com o resultado desta corrida presidencial em 2020, acho que fica claro de que o trumpismo é uma das principais forças políticas nos Estados Unidos."
Essa "aliança de forças que sustentou os EUA durante o governo Trump" seria resultado de "fissuras profundas existentes na sociedade estadunidense".
Em primeiro lugar, o trumpismo representa uma " descrença, uma desconfiança da política", disse o pesquisador:
"Termos como 'deep state' ou establishment são constantemente mobilizados pelo discurso trumpista", disse Mendonça. "Isso acabou criando uma base sólida, que desconfia dos políticos."
Para ele, essa desconfiança leva os adeptos do movimento a "não tolerarem mediações" políticas, tornando-se "cada vez mais radicais".
O movimento também é caracterizado por não "respeitar as instituições formais e informais do jogo político estadunidense":
"Trump [...] atropela regras escritas e não escritas do jogo político dos EUA e, não raro, incentiva seus apoiadores a desconfiarem de tudo e todos", disse Mendonça.
O trumpismo também se destaca por fazer uso ostensivo das redes sociais como veículo de disseminação de mensagens políticas.
"Sem as redes sociais e Steve Bannon, talvez não houvesse trumpismo", acredita o professor. "Essa linguagem política é, acima de tudo, uma forma muito eficiente de gestão do medo."
Para o produtor do podcast "Chutando a Escada", o movimento recorre à retórica do medo para unir os seus adeptos. "Medo do comunismo, medo do islamismo, medo da comunidade LGBTQIA+, medo da China" são mobilizados, em uma "linguagem política potencializada pelas redes sociais".
Além disso, o nacionalismo é a tônica do trumpismo, "algo que fica muito claro no slogan 'America First' [América em primeiro lugar".
"Isso gerou uma política externa unilateral e agressiva e um esvaziamento de inúmeras instituições internacionais que, por mais contraditório que isso pareça, os Estados Unidos ajudaram a criar", notou o pesquisador.
Por fim, o trumpismo tem "uma relação complicada com a estrutura partidária estadunidense", que se manifesta não só em uma atitude hostil com o seu rival Partido Democrata, mas também com o próprio Partido Republicano.
"Hoje o Partido Republicano depende mais do trumpismo do que o contrário", acredita Mendonça.
Partido Republicano
O fortalecimento do trumpismo é um desafio para o próprio Partido Republicano, no qual adeptos do movimento associado à Trump ganham cada vez mais espaço.
O partido, normalmente associado ao conservadorismo e à defesa de pautas liberais na economia, deverá se desdobrar para acomodar em suas fileiras membros desse movimento considerado de extrema-direita.
Além disso, teorias conspiratórias como o QAnon, cujos adeptos acreditam que Donald Trump está liderando uma luta secreta contra uma rede de traficantes de crianças liderada por políticos democratas e atores de Hollywood, conquistam território no partido.
De acordo com a Reuters, mais de dez dos candidatos ao Congresso dos EUA pelo Partido Republicano declararam afiliação à teoria conspiratória, apesar de ela ter sido considerada uma ameaça de terrorismo doméstico pelo FBI.
"Eu acho que o Partido Republicano está mesmo em uma encruzilhada", disse Mendonça. "Conseguirá desembarcar do trumpismo sem perder uma quantidade substantiva de eleitores? O Partido Republicano tem força suficiente para construir um 'trumpismo light'?", questionou Mendonça, que respondeu: "O desafio é grande."
"Nos próximos dias, acho bastante provável que, por conta dessa relação conflituosa de Trump com o partido, assistiremos a uma tensão mais forte, e até a pequenas rupturas, entre o que estamos chamando aqui de trumpismo e o Partido Republicano", acredita o professor.
O trumpismo pode inclusive ter uma vantagem sobre a agremiação que o abriga: o movimento é maleável institucionalmente e "não precisa de partido para sobreviver".
Para o professor, essas contradições poderão modificar o papel do Partido Republicano na política norte-americana.
"Talvez essa encruzilhada transforme mesmo o Partido Republicano", concluiu o professor.
Nesta sexta-feira (13), resultados parciais das eleições norte-americanas apontam para vitória do Partido Republicano no Senado, com 50 cadeiras contra 48 do Partido Democrata. A Câmara baixa do Congresso, por sua vez, mantém a maioria democrata, com 219 parlamentares contra 202.
A corrida pela Casa Branca aponta, até o presente momento, vitória do candidato Joe Biden, com 290 delegados no Colégio Eleitoral contra 217 de seu rival e atual presidente dos EUA, Donald Trump.