O índice foi o maior dos últimos 20 anos. Em 2016, as abstenções ficaram em 17,5%, enquanto em 2012 a taxa foi de 16,9%. Ao todo, 34 milhões de brasileiros deixaram de votar, de um total de 147 milhões de cidadãos aptos a participar do processo eleitoral.
O número de votos válidos caiu nas 26 capitais do Brasil. Em 14 delas, a abstenção ficou acima de 25%. Ao todo, 113.281.200 pessoas votaram no domingo (15). Em 57 cidades haverá segundo turno, marcado para 29 de novembro.
Segundo o advogado e especialista em direito eleitoral e ciência política Michael Mohallem, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), "é muito difícil identificar com grau de certeza o que leva as pessoas a não votar ou votar nulo ou branco".
Mesmo assim, ele diz que não é possível analisar as eleições municipais deste ano sem levar em consideração a pandemia da COVID-19. Ele aponta alguns fatores conjunturais que levaram os eleitores a não participarem do processo.
"Primeiro, a campanha foi atípica, muito fria, como a gente jamais viu, sem atos de ruas e grandes mobilizações. A campanha não chegou até as pessoas. Segundo, o medo de ser infectado, que não é desprezível. A decisão de adiar as eleições foi acertada, mas a doença não passou e, pior, uma semana antes da votação começou a ser identificada uma suposta segunda onda", disse Mohallem.
'Voto semi-facultativo'
Além disso, o advogado cita um terceiro elemento, "muito peculiar ao Brasil".
"O voto é obrigatório só do ponto de vista formal. Alguns acadêmicos chamam inclusive de semi-facultativo. A multa por não votar é irrisória, menos que uma passagem de ônibus. Esse não é um fator que inibe as pessoas a não irem votar. E esse ano ainda teve a facilidade da justificação por meio de aplicativos", refletiu o professor.
Para a cientista política Ariane Roder, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além da "pandemia e o receio da contaminação e da aglomeração", existe uma "descrença no processo político como motor de mudança", assim como "dificuldade de encontrar opções políticas que gerem a percepção de credibilidade no eleitor".
Ecos de 2018
Neste contexto, ela argumenta que o grande número de abstenções e votos nulos e brancos ainda guarda reflexo das eleições de 2018, cujos resultados não teriam concretizado o desejo do eleitor por uma maior moralidade na política.
"Em 2018, aventou-se a emergência e sucesso de muitos nomes antes desconhecidos, com a bandeira da nova política, permeada pela lógica da ética e de princípios de uma certa moralidade política. Como essa retórica não se confirmou na prática, levou a uma percepção de descrença ainda maior no eleitorado", ponderou a especialista.
Uso político da abstenção
Segundo Michael Mohallem, os efeitos da alta abstenção são nocivos para a democracia, trazendo um "elemento de déficit de legitimidade" para o processo eleitoral.
"Nos Estados Unidos, em votações com baixa participação, é possível ter um governante importante eleito por um quarto da população. Ao tomar decisões difíceis, sem respaldo maior da população, existe um problema: um déficit de legitimidade. Não da regra, que se fez cumprir, não é um argumento de direito, ninguém questiona o resultado do pleito. Mas vai haver sempre a dúvida se aquele indivíduo ganhou por vontade da maioria. O argumento não tem força jurídica, mas é usado por adversários para enfraquecimento dos governantes", avaliou o advogado.
Votação de Paes menor do que abstenção
No caso do Rio de Janeiro, onde houve abstenção de 32,8%, contra 24,3% no pleito de 2016, o número de eleitores que não foram votar (1,6 milhão) foi maior do que a votação do candidato Eduardo Paes (974,8 mil).
Em perspectiva histórica, Mohallem diz que o comparecimento às urnas no Brasil ainda é alto, com média de aproximadamente 80%. Por outro lado, os índices de abstenções vêm crescendo desde as eleições municipais de 2004.
O advogado acha que é preciso de mais tempo para avaliar esse processo, mas diz que, se os números continuarem a subir, em breve os partidos terão que "gastar mais tempo para fazer campanhas paralelas para incentivar as pessoas a votar"
'Afasta Estado da sociedade'
Ariane Roder, por sua vez, diz que a "abstenção no processo eleitoral e em outros mecanismos de participação política afasta ainda mais o Estado da sociedade, inibindo processos de mudanças que possam emergir de baixo para cima, ou seja, demandados e articulados pela sociedade".
"O direito ao voto no Brasil de forma universal é uma conquista que não pode e não deve ser desprezada. É por meio do voto que se começam mudanças na sociedade, mas, obviamente, essas mudanças não terminam no voto. É necessário maior participação política, e para isso é importante maior educação e engajamento. A importância do voto e a democracia são algo que precisam o tempo todo ser reforçado e refletido pela sociedade. Mas não há sinais de que estamos caminhando nessa direção", lamentou a professora da UFRJ.