Criticado por defender posturas que vão na contramão da ciência, como a rejeição ao isolamento social e a propaganda da cloroquina como tratamento para o coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro vem defendendo que a vacina não seja obrigatória.
Ao argumentar que cabe a ele determinar sobre essa questão, o chefe de Estado citou a lei 6.259, de 1975, que atribui ao Ministério da Saúde estipular que vacinas são obrigatórias.
No entanto, o próprio Bolsonaro assinou, no início do ano, a lei 13.979, que esclarece as medidas que podem ser criadas no país no combate à pandemia. Entre elas, está a adoção de vacinação obrigatória por estados e municípios. Além disso, a Constituição afirma que a gestão da saúde é de competência da União, estados e municípios.
PDT e PTB: ações no sentido inverso
A questão gerou duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), de objetivos opostos, que serão julgadas no Supremo Tribunal Federal de 11 a 19 de dezembro. Na ADI 6.586, o PDT pede que seja reconhecida a competência de estados e municípios para determinar a vacinação compulsória. Já na ADI 6.587, o PTB defende que essa possibilidade, prevista na lei assinada por Bolsonaro, seja declarada inconstitucional.
Segundo especialistas, o Brasil possui tradição em planos nacionais de imunização, com muitas vacinas obrigatórias. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina a compulsoriedade para essa faixa da população. Se em 1904 tivemos a Revolta da Vacina - um motim contra a obrigatoriedade da imunização, nas últimas décadas, contudo, esse tema não fez parte do debate público.
Embora na maior parte do mundo a vacina contra o coronavírus deva ser facultativa, existem precedentes de compulsoriedade na maior parte dos países, recorda o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado.
"A primeira vacina da varíola, descoberta no final do século 18, e que começou a ser aplicada no século 19, foi obrigatória na Europa antes das Américas. Foi obrigatória no mundo todo. À época, os Estados Unidos julgaram uma ação sobre sua compulsoriedade. Vacinas foram obrigatórias em boa parte do século 20", disse à Sputnik Brasil o pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP.
'Confundem obrigatoriedade com forçado'
Ao mesmo tempo, Dourado afirma que "as pessoas confundem obrigatoriedade com forçado", como se um "agente de saúde invadisse a casa das pessoas para dar uma agulhada".
"Quem não se vacina tem restrição para fazer várias coisas", explicou. "Para o Ministério da Saúde, a vacinação pode ser obrigatória para matrícula em creches, alistamento militar e contratação pela CLT, por exemplo, embora no ECA a obrigatoriedade seja mais rigorosa", acrescentou.
Dourado considera que a vacina pode sim ser obrigatória, com o interesse coletivo prevalecendo sobre a liberdade individual. Ele cita inclusive a possibilidade de países exigirem a imunização contra a COVID-19 para liberar a entrada em seu território.
"Mas, honestamente, acho que a vacina não precisa ser obrigatória, a não ser que a gente tenha um movimento antivacina crescente. Isso é uma discussão secundária. A questão é muito mais de desenho de política pública. A vacinação no Brasil sempre foi obrigatória e nunca se falou nesse tema, as campanhas sempre foram efetivas e as pessoas se vacinaram. Pelo menos até recentemente. De quatro a cinco anos para cá, a cobertura vacinal caiu. O sarampo, que é muito contagioso, é um exemplo", refletiu o pesquisador do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.
Direito individual x Risco à coletividade
Para Gerson Salvador, especialista em infectologia e saúde pública, a vacina contra o coronavírus deve ser obrigatória no Brasil.
"Trata-se de proteção coletiva. Um indivíduo coloca em risco o restante da sociedade quando se nega a ser vacinado. É claro que a sanção deve ser proporcional, mas podem caber sanções administrativas para uma pessoa que se recusa a se vacinar, notadamente em um cenário de pandemia. Ninguém pode alegar direito individual colocando em risco à saúde da coletividade", disse o especialista à Sputnik Brasil.
Discussão 'fora de momento'
Já o infectologista Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, acredita que a discussão sobre a compulsoriedade da vacina contra a COVID-19 é "completamente fora de momento e sentido".
"Só se pensa em vacinação obrigatória em controle de epidemias, quando se faz uma vacinação em massa, com vacinas perto de 100% de eficácia, o que não é o caso agora", afirmou à Sputnik Brasil.
Kfouri diz ainda que não há garantias de que as vacinas testadas até o momento previnam o indivíduo de ter a doença e, ao mesmo tempo, impeçam a transmissão do vírus. "Pelo menos em um primeiro momento, a vacinação terá o intuito de prevenir formas graves e diminuir mortalidade e hospitalização", argumentou.
Para ele, o foco deve ser a "educação, persuasão e convencimento" da população, "muito mais do que a coerção", que, segundo Kfouri, "tira a credibilidade da importância da vacinação" e confunde as pessoas.
Ex-ministro: governo deve apresentar plano
O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT), por sua vez, diz que os estudos têm mostrado que as vacinas se mostraram eficazes para "bloquear e reduzir as transmissões", por isso precisam ser obrigatórias. Segundo ele, o Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Brasil é "sólido", e o país tem "experiência" e "condições financeiras" para vacinar a população. Por outro lado, ele cobra a elaboração de um plano nacional estruturado e coordenado pelo governo.
"Defendo que o Brasil tenha um plano para todos. A população tem o direito de receber a vacina, e o governo tem a obrigação de garanti-la. O governo precisa incorporar ao SUS todas as vacinas com resultados de eficácia e segurança, não ficar restrito a apenas uma. Incorporar a vacina do Butantan [CoronaVac, fruto de parceria com a chinesa Sinovac], a russa [Sputnik V] e a da Pfizer, por exemplo", afirmou o ex-ministro à Sputnik Brasil.
O ministro da Saúde do Brasil, Eduardo Pazuello, disse nesta quarta-feira que a vacinação contra a COVID-19 poderá começar em dezembro ou janeiro com o fármaco desenvolvido pela Pfizer/BioNTechhttps://t.co/1vnu7IurGf
— Sputnik Brasil (@sputnik_brasil) December 9, 2020
'Corrida às vacinas'
O vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Reinaldo Guimarães, também pensa que a vacinação deva ser compulsória, particularmente em uma situação de emergência sanitária. "O livre arbítrio do cidadão é importante, mas não pode prejudicar o outro cidadão", disse à Sputnik Brasil.
Por outro lado, ele acha que vai ocorrer uma "corrida às vacinas", pois a "população está muito ansiosa para ser imunizada, após quase um ano de confinamento e dificuldade de toda a ordem".
A partir do histórico de decisões do STF, o professor de direito Thomaz Pereira, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), acredita que a Corte decidirá pela obrigatoriedade da vacina. Em abril deste ano, o Supremo reiterou que estados e municípios tinham autonomia para definir medidas de isolamento e de combate à pandemia específicas.
"A postura do Supremo tem sido no sentido de autorizar que estados, dentro de suas competências, tomem as medidas que julgarem necessárias. A gente entende isso em um contexto em que o governo federal é visto criticamente na maneira como lida com a pandemia, como deixando de tomar medidas necessárias ou tomando medidas contrárias a algum tipo de consenso científico", disse Pereira à Sputnik Brasil.
Abrasco pede coordenação nacional
Para o presidente da Abrasco, a falta de planejamento do governo e a atitude de Bolsonaro de "demonizar" a vacina CoronaVac pode fazer com que cada estado adote uma política de vacinação diferente, o que prejudicará o plano de imunização do país.
"Os estados passaram a coordenar o isolamento e o uso de máscaras, isso foi uma solução possível. Mas, no caso da vacinação, é diferente, pois exige um planejamento e coordenação nacional", disse Reinaldo Guimarães à Sputnik Brasil.