A pandemia da COVID-19 foi a questão central para toda a comunidade internacional ao longo de 2020. Os dados da Universidade Johns Hopkins mostram que, até esta quinta-feira (31), o novo coronavírus ceifou a vida de mais de 1,8 milhão de pessoas em todo o mundo, com quase 83 milhões de casos confirmados ao redor do planeta.
Além de matar quase dois milhões de pessoas, a pandemia fez a economia mundial despencar. Segundo os dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), economias poderosas como as dos Estados Unidos, Japão, Alemanha, e Reino Unido, terão quedas expressivas no PIB: -4,1%, -5,3%, -6,0% e -9,8%, respectivamente. A forte recessão econômica é esperada ainda em toda a zona do euro. Entre os dez países com maior PIB em 2019, apenas a China deve registrar crescimento econômico em 2020 - um avanço de 1,9%.
Apesar de que alguns países, principalmente do sudeste asiático e da África, devam registrar avanços econômicos em 2020, o resultado chinês é o único crescimento esperado pelo FMI no ano entre as economias com PIB superior a um trilhão de dólares (cerca de R$ 5,19 trilhões).
"É difícil reconhecer algum país que tenha se fortalecido nesse ano tão caótico, mas eu apontaria a China. Por incrível que pareça, apesar de ter sido o epicentro da pandemia, ainda no final de 2019, e o país mais afetado, certamente, pelo menos até o final de janeiro de 2020, é o país que soube se colocar na cena internacional de maneira bastante ativa, assertiva, diante da crise sanitária", avalia o cientista político Paulo Velasco, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em entrevista à Sputnik Brasil.
"Claramente que nesse grupo de países, com a China como o principal deles, o que tem de muito importante para ter conseguido [essa recuperação] - e aí você pode incluir a Coreia [do Sul], o Vietnã e outros países da Ásia -, foi a grande capacidade do governo de planejamento", avalia Summa, em entrevista à Sputnik Brasil, apontando que os países com um "Estado mais planejador", tanto no controle da pandemia quanto no planejamento econômico, devem sair na frente na retomada após a crise.
Segundo o professor Robson Coelho Cardoch Valdez, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS e pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB, é importante destacar que a China também sofreu críticas durante a pandemia, apesar de um quadro geral positivo, e se viu em meio a uma disputa de narrativas com os EUA.
"Ainda hoje se discute a forma como a China abordou o surto inicial da pandemia. Então ficou essa mácula na imagem da China nas relações internacionais chinesas. [...] E [a China] acabou sendo protagonista, ao lado dos EUA, dessa batalha de narrativas sobre o surto original", afirma Valdez em entrevista à Sputnik Brasil, acrescentando que essa disputa ganhou força no antagonismo do presidente norte-americano, Donald Trump, e seu poder de influência política mundo afora, impulsionado pela corrida eleitoral nos EUA.
Liderança franco-alemã e avanço da agenda israelense
Além da China, o professor da UERJ, Paulo Velasco, destaca a liderança europeia de França e Alemanha, que capitanearam a zona do euro durante a crise sanitária, que teve na Europa um de seus epicentros mais mortais, apesar do início da vacinação em praticamente toda a região já em dezembro.
"Embora ambos tenham tido um número importante de contaminados e mortos, os dois países souberam ocupar aquilo que se espera deles, uma posição central, assumir o ônus da liderança dentro da União Europeia, foram os articuladores de um super pacote de ajuda econômica no âmbito da União Europeia [...], um pacote na ordem de 750 bilhões de euros [cerca de R$ 4,8 trilhões]", diz o professor da UERJ.
O economista Ricardo Summa também destaca que a resposta europeia deve fazer com que a economia da região tenha um retorno mais acelerado do que a economia dos EUA, por exemplo.
"A Europa eu acho que vai acabar saindo melhor do que os Estados Unidos, comparativamente, porque também teve respostas mais centralizadas e um pouco mais sensatas do que o governo dos Estados Unidos", afirma o economista.
Já para o professor Valdez, um país que aproveitou o momento eleitoral dos EUA e a conjuntura global para alcançar seus interesses foi Israel, que avançou com sua agenda no Oriente Médio com o apoio e articulação do governo Trump.
"Israel foi um país que se deu muito bem, que aproveitou, apesar de toda essa turbulência, e também levando em consideração que os Estados Unidos estavam em ano eleitoral, conseguiu avançar em benefício próprio em uma agenda de normalização com os países do Oriente Médio", afirma Valdez, citando os acordos israelenses com o Bahrein, os Emirados Árabes Unidos e o Sudão. Como consequência, a Palestina saiu prejudicada desse processo, ainda segundo o pesquisador.
Valdez destaca também o desempenho na pandemia de países como Taiwan, Cingapura, Vietnã, Nova Zelândia e Islândia por manterem um baixo número de mortes, mostrando capacidade do governo de organização para o controle da COVID-19.
EUA perdem 'prestígio', mas ainda têm 'muita gordura para queimar'
Apesar da força econômica, nenhum lugar do mundo foi impactado pela pandemia da COVID-19 em números absolutos como os EUA. O país mais rico do mundo soma hoje mais de 342 mil mortes causadas pela doença e tem registrado picos de até 3,7 mil óbitos diários na pandemia nas últimas semanas.
Para o professor Paulo Velasco, em oposição às lideranças europeias e principalmente ao destaque da China ao longo do ano, os EUA "perderam prestígio e credibilidade" em 2020 diante, não só do fracasso no controle da pandemia, mas também das crises internas. Além de uma eleição conturbada e questionada até o fim pelo presidente Donald Trump, o país viveu uma onda de protestos antirracistas no meio do ano e lida com uma das piores crises econômicas de sua história. A chegada do governo do presidente eleito Joe Biden, no entanto, traz novos horizontes, segundo Velasco.
"A saída do Trump e a entrada de Biden, a partir de janeiro, traz melhores perspectivas para os Estados Unidos, especialmente no modo como o país lidará com o multilateralismo, com os espaços multilaterais", aponta Velasco, que acredita que os EUA tomarão uma postura mais "cooperativa" na gestão Biden, apesar de que a rivalidade com a China deva continuar avançando. "O Biden é muito consciente, de fato, da importância de se afirmarem diante da China e não perderem ainda mais espaço para os chineses", acrescenta.
Já o professor Robson Valdez, destaca que apesar de os EUA terem sofrido desgaste em sua imagem no ano de 2020, o poder norte-americano ainda prevalece nas relações internacionais.
"Acredito que há espaço para que essa imagem seja recuperada, até porque, gostando ou não dos Estados Unidos, eles são a maior potência econômica, a maior potência política e militar. Apesar de ter uma redução no seu poder relativo de pautar as questões, o poder estrutural dos Estados Unidos ainda é enorme", afirma Valdez, que acredita que o ano termina em um "empate técnico" entre EUA e China.
"Ainda que o governo Trump não tenha conduzido da melhor forma a questão da pandemia, os Estados Unidos têm, vamos dizer, muita gordura para queimar", diz.
Imagem do Brasil se deteriora em ano que deixará mundo mais desigual
O ano de 2020 não foi de boas notícias no Brasil. Além de terminar o ano como o segundo país com mais mortes na pandemia, quase 194 mil óbitos, o país lida com o aumento da miséria e um recorde de 14 milhões de desempregados, conforme dados do IBGE. Segundo o FMI, a economia brasileira deve encolher algo em torno de 5,8% neste ano.
"Tendo em vista que aqui o auxílio não vai ser prorrogado e com essa inflação recente que diminuiu muito os salários reais de quem ainda está empregado, isso tende a por si só já gerar, se não uma recessão novamente [em 2021], porque vai cair a demanda agregada, no mínimo um crescimento bem mais estagnado da economia, na melhor das hipóteses", aponta o economista Ricardo Summa, que destaca ainda que o mundo inteiro viverá um aumento da desigualdade, tanto internamente como entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Nesse contexto, o cientista político Paulo Velasco aponta que o Brasil terá ainda o problema de uma imagem desgastada diante do mundo após os acontecimentos deste ano.
"A imagem do Brasil fica muito arranhada ao final de 2020, se a gente fizer um balanço do que foi o ano. Foi uma presença muito caótica do Brasil na cena internacional, muito em função de posições para lá de controversas assumidas pelo nosso presidente", avalia Paulo Velasco, que destaca o avanço do desmatamento e queimadas na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal como pontos negativos para o Brasil no exterior e que ameaçam acordos importantes, como o Mercosul-União Europeia.
"É muito triste porque desmonta anos e anos dedicados pela diplomacia brasileira à construção de uma imagem positiva, de uma imagem cooperativa, de uma imagem responsável", lamenta o professor, que ressalta ainda a continuidade de uma postura "negacionista" do governo. "Os dividendos são péssimos para o Brasil neste ano de 2020, em termos de imagem internacional, infelizmente", conclui.
O pesquisador Robson Valdez lembra ainda que a postura internacional brasileira começou a mudar ainda no governo anterior, mas que se transformou radicalmente na gestão Bolsonaro, desconstruindo uma "imagem respeitada" no plano internacional e perdendo ainda mais credibilidade em 2020.
"A partir do governo Temer percebeu-se uma correção de rumos no sentido de se repensar algumas dessas estratégias. Mas com a chegada de Bolsonaro, a política externa parece ter dado um novo começo para a política externa brasileira renunciando a tudo que foi construído até então", aponta Valdez, acrescentando que a atual crise política brasileira "desgasta ainda mais a imagem democrática do país no exterior".