Neste ano, o mundo aprendeu na prática o que significam jargões como "desafios transnacionais". Se existe algum ser vivo que não respeitou as fronteiras dos Estados e atuou de forma transnacional em 2020, foi o novo coronavírus.
Mas ficou claro que, para combatê-lo de forma eficiente, era necessário acionar o trabalho das organizações internacionais e agir globalmente.
O cidadão comum se habituou a ouvir notícias sobre a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a opinar sobre a necessidade de estabelecer controles de fronteiras, atividades antes restritas aos corredores dos ministérios das Relações Exteriores.
A atenção trouxe consigo uma onda de críticas e ceticismo em relação à atuação de grandes organizações internacionais como as Nações Unidas (ONU), Organização Mundial do Comércio (OMC) e, sem dúvida, a OMS.
"O ano de 2020 foi, para muitas áreas e institutos, um teste de resiliência", disse Roman Reinhardt, professor associado da cátedra de diplomacia do Instituto de Relações Internacionais de Moscou (MGIMO, na sigla em russo), à Sputnik Brasil. "Esta resiliência, para mim, foi o que definiu o ano para as organizações internacionais."
Para o professor, essas organizações já atuavam em ambiente desfavorável antes mesmo de 2020.
"Há alguns anos observamos o que alguns especialistas chamam de renascimento da geopolítica, isto é, o fortalecimento do papel dos Estados como atores das relações internacionais, em detrimento das organizações internacionais", explicou Reinhardt.
A postura cética do governo dos EUA em relação ao multilateralismo, por exemplo, se fortalece desde a eleição de Donald Trump, em 2016. Em 2018, o país já havia se retirado do acordo nuclear iraniano e anunciado a saída do Acordo de Paris sobre o clima.
"Podemos dizer que, aos olhos de muitos, o papel das organizações internacionais está em declínio", disse Reinhardt. "Os Estados estão empenhados em conduzir políticas externas independentes e soberanas, pautadas pelos seus interesses nacionais."
Essa tendência ao isolacionismo, no entanto, sofreu revés com o advento da pandemia de COVID-19.
Nesse momento, "o mundo compreendeu que questões como saúde e política social, que antes da pandemia estavam em segundo plano na narrativa política global, se tornaram os mais urgentes e prioritários", relatou Reinhardt.
Se, anteriormente, "as atividades principais das organizações internacionais estavam focadas em questões como segurança e desenvolvimento econômico", agora "o primeiro plano está ocupado pela saúde".
Nesse sentido, "esse ano foi historicamente crucial para institutos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o papel dela, por motivos óbvios, subitamente se tornou muito importante".
O protagonismo veio com duras críticas. O presidente dos EUA, Donald Trump, acusou a OMS de ser dominada pela China e retirou seu país da organização.
The W.H.O. really blew it. For some reason, funded largely by the United States, yet very China centric. We will be giving that a good look. Fortunately I rejected their advice on keeping our borders open to China early on. Why did they give us such a faulty recommendation?
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) April 7, 2020
A OMS realmente estragou tudo. Por algum motivo, fundada principalmente pelos EUA, mas basicamente centrada na China. Nós vamos ficar de olho. Felizmente, eu rejeitei a recomendação deles de manter as fronteiras abertas para a China logo no início. Por que eles deram uma recomendação tão incorreta?
Campanhas propagadas pelas redes sociais colocavam em dúvida as recomendações da OMS, que se desdobrava para lidar com um problema de escala planetária, com um orçamento bastante reduzido.
"Sem dúvida, no início do ano, as ações de organizações como a OMS e outras foram objeto de críticas severas, uma vez que foi difícil se adaptar e aceitar esse novo desafio", lembra Reinhardt. "Não vejo nada de errado nas críticas em si, uma vez que elas impedem que as organizações atuem de forma desleixada."
"Críticas construtivas às organizações internacionais e aos governos não só são permitidas, mas necessárias", acredita o professor, lembrando que "existem pontos que podem ser aprimorados" na OMS, como a "rigidez de seu aparato burocrático".
"Mas nesses casos é necessário apontar a crítica concreta e as formas pelas quais as ações podem ser otimizadas", disse Reinhardt. "Não basta fazer críticas destrutivas [...] falando simplesmente que as organizações internacionais não sabem fazer nada e não entendem nada."
The 🇺🇸 has been a longstanding & generous friend to @WHO & we hope it will continue to be so. We regret the decision of @realDonaldTrump to order a halt in funding to WHO.
— Tedros Adhanom Ghebreyesus (@DrTedros) April 15, 2020
Together, we can improve the health of many of the world’s poorest and most vulnerable people. #COVID19
Os EUA tem sido um amigo de longa data e generoso da OMS e esperamos que assim continue. Lamentamos a decisão do [presidente dos EUA] Donald Trump de suspender o financiamento da OMS. Juntos, podemos aprimorar a saúde das mais pobres e mais vulneráveis deste mundo.
Apesar das dificuldades, Reinhardt acredita que a relevância da OMS "deve se manter não só em 2021, mas nos anos vindouros".
"Quando o mundo superar a pandemia atual, a tarefa número um será impedir o surgimento de uma nova", acredita o professor.
Ano de reconstrução
A percepção de que as organizações internacionais são necessárias, associada à avalanche de críticas, pode dar ensejo à reforma de algumas instituições.
O caso da Organização Mundial do Comércio (OMC) é emblemático: após passar por séria crise, desencadeada tanto pela guerra comercial entre Washington e Pequim quanto pela postura abertamente hostil da administração Trump em relação à organização, existe possibilidade real de uma reforma da OMC em 2021.
"A percepção que temos é que todos os países estão interessados em reformar a organização", disse Dmitry Lyakishev, representante permanente da Rússia na OMC durante evento do Clube de Discussão Valdai.
"Existem ideias distintas sobre como essa reforma deveria ser conduzida, mas há consenso sobre a sua importância", reiterou Lyakishev.
Para Reinhard, "as próprias organizações estão em transformação, e já podemos ver alguns fenômenos positivos antes inimagináveis".
"No início de 2021 deve ser confirmada a nomeação da primeira mulher no cargo de diretora-geral da OMC", lembrou o professor.
A candidata nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala obteve apoio do conjunto de Estados-membros para assumir o cargo, enfrentando oposição somente dos EUA. Reinhardt espera que, em 2021, "a nova administração na Casa Branca flexibilize a sua abordagem em relação a esse tema".
Para ele, a provável nomeação de Okonjo-Iweala será "um passo positivo, não só no tocante às políticas de gênero e igualdade, mas em princípio".
"Será um momento único e histórico, que trará caráter inovador a essa organização, o que pode incitar mais mudanças em sua esteira", disse o professor.
Em maio de 2020, o diretor-geral da organização, o brasileiro Roberto Azevêdo, havia renunciado ao cargo um ano antes do fim do mandato, entendendo que a OMC precisava de nova liderança para superar sua crise.
"As lições que aprendemos em 2020 não devem ser repetidas", alertou Reinhardt. "Os Estados devem encarar as organizações internacionais como parceiras, que podem prover assistência e embasamento, e não como estruturas quaisquer que limitam a sua soberania."
O ano de 2020 foi marcado pela propagação do novo coronavírus em escala mundial, deixando quase dois milhões de mortos e mais de 82 milhões de pessoas infectadas mundialmente. A pandemia impactou as formas de interações entre os Estados e colocou em xeque a relevância das organizações internacionais.