As portas fechadas trazidas com o novo coronavírus deixaram produtores e trabalhadores culturais com poucas alternativas e as características específicas do setor agravaram a situação. Fatores como a necessidade de reunir pessoas e a fragilidade dos empregos e estabelecimentos criaram uma grave situação com consequências econômicas, sociais e simbólicas. Com os recursos da Lei Aldir Blanc, porém, o setor, que perdeu 49% dos empregos até junho do ano passado, teve um alívio momentâneo.
Fruto de pressão do setor cultural diante de crise sem precedentes devido à pandemia do novo coronavírus, a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, de autoria da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), foi editada em junho do ano passado e liberou R$ 3 bilhões para a área da cultura. A legislação trouxe ações como o pagamento de auxílio a trabalhadores da cultura - R$ 600,00 por mês - e estabelecimentos culturais - com valores entre R$ 3 mil e R$ 10 mil.
No dia 29 de dezembro de 2020, uma medida provisória publicada pelo governo federal estendeu até o final deste ano o prazo para a utilização de recursos já empenhados na lei, ou seja, com a previsão dos gastos descrita até o fim do ano passado. Esse detalhe é criticado pelo setor cultural que busca que o projeto de alívio seja estendido de forma integral, uma vez que a pandemia continua destruindo empregos da cultura e assim mais recursos seriam distribuídos.
Uma das pessoas que recebeu o auxílio da Lei Aldir Blanc, em 2020, foi o ator Leonardo Selva, que afirma que o impacto da pandemia sobre seu trabalho "foi gigante". O artista, morador do Rio de Janeiro, lembra que o período foi marcado por dificuldades profissionais.
"Sem aglomeração de pessoas o teatro não funcionaria e também os projetos em que eu estava trabalhando no audiovisual se interromperam, terminaram com uma equipe reduzida, as gravações pararam e sem perspectiva de volta. Então, foi praticamente um ano de completas incertezas profissionais, até de cogitar fazer outras coisas em outros ramos", conta o ator em entrevista à Sputnik Brasil.
"É um respiro né, até para manter as contas em dia é muito difícil. Só o auxílio não sustenta em um setor que parou completamente, você não tem mais nenhuma possibilidade e continua tudo parado. Então, acredito que o valor não foi suficiente, longe disso", diz.
Leonardo Selva defende a continuidade do benefício em 2021 para que o setor continue existindo e lamenta que trabalhadores da área, inclusive amigos, estejam abandonando suas profissões devido à falta de perspectiva.
Com cenário 'caótico', setor reivindica 'prorrogação real' da lei
A situação frágil dos trabalhadores da cultura vem sendo denunciada por membros de organizações do setor cultural que apontam a necessidade de uma prorrogação real da Lei Aldir Blanc, estendendo o prazo de empenho das verbas.
Uma dessas pessoas é a cineasta catarinense Cíntia Domit Bittar, que integra a diretoria da Associação de Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API). Bittar afirma que a pandemia "veio para tornar ainda mais caótico" o cenário do audiovisual, destacando a escassez de medidas do atual governo para o setor.
"Estamos em um momento bastante drástico do audiovisual brasileiro, o que é uma pena, porque o audiovisual brasileiro é a prova de que a política pública para o desenvolvimento de um setor dá resultado", afirma Bittar, em entrevista à Sputnik Brasil.
"Prorrogar, na verdade, significa lança a 'Lei Aldir Blanc 2021' - uma nova injeção de recursos que podem ser da mesma fonte, inclusive, do Fundo Nacional de Cultura - é muito importante. Ainda mais agora que nós já passamos por essa experiência da primeira Aldir Blanc", aponta Bittar, ressaltando a experiência acumulada de gestores culturais com a legislação em 2020.
Burocracia escancara falta de investimento e desigualdades no setor
A cineasta Cíntia Domit Bittar acredita que a falta de investimento público no setor cultural se refletiu em problemas de implementação da Lei Aldir Blanc, como desigualdades regionais e problemas de estrutura para lidar com a burocracia e os prazos exigidos. É o que também aponta Eduardo Barata, presidente da Associação dos Produtores de Teatro, sediada no Rio de Janeiro.
"[As diferentes regiões do Brasil] têm uma estrutura muito diferente no setor cultural e também têm singularidades. [...] Falam tanto que a Lei Rouanet concentra só no Sudeste, mas a Lei Aldir Blanc, da forma que eles fizeram, privilegiou quem tem estrutura maior", diz Barata, em entrevista à Sputnik Brasil, destacando que os prazos e as burocracias da legislação foram mais facilmente cumpridos nos principais centros, devido à melhor esturura.
"Como há uma série de burocracias, uma série de falta de entendimento, demorou muito até esse dinheiro chegar realmente nos entes federativos. Isso aconteceu no final de novembro, é muito tempo", aponta Barata, que disse que nesse ínterim os trabalhadores do setor ficaram "completamente abandonados".
Para a cineasta Cíntia Domit Bittar, as desigualdades regionais também revelam o sucateamento do setor cultural no Brasil, o que atrapalhou o processamento dos recursos. Dados publicados pela Secretaria Especial de Cultura do governo federal apontam que 65% dos entes federativos ainda não entraram em processo de liquidação dos recursos empenhados.
"É importante termos sim, uma cultura, um setor cultural, artístico e audiovisual forte. Forte e bem amparado nesse momento de grave crise em que estamos, sim, ainda impedidos de trabalhar ou totalmente, ou com a plena execução de nossas atividades", diz.
Em nota, a Secretaria Especial de Cultura, que integra o Ministério do Turismo, disse à Sputnik Brasil que cerca de R$ 1,2 bilhão proveniente da Lei Aldir Blanc foi empregado pelos gestores em estados e municípios. Ainda segundo a nota, o órgão estima que 700 mil trabalhadores foram beneficiados em cerca de quatro mil municípios brasileiros de todas as unidades federativas, mas aponta que segue "mensurando, junto aos estados e municípios, balanço preliminar dos beneficiados pela medida, bem como os recursos não empenhados".
Pandemia mostra importância da arte e gera inovações
Ao longo do período de isolamento e da angústia gerada pela crise sanitária, a arte tornou-se parte da rotina dos cidadãos, o que teria feito a sociedade entender melhor a importância do setor cultural.
É o que destaca o presidente da APTR, Eduardo Barata, que acredita que, simbolicamente, "a sociedade entendeu a importância do setor cultural" durante a atual crise, um momento em que "a cultura também se faz presente, hoje, na vida dos cidadãos, quase como uma cesta básica da alma".
Barata recorda também que durante a pandemia, assim como outros setores culturais, o teatro foi obrigado a inovar usando a Internet. O produtor explica que o setor descobriu uma forma de ampliar o alcance da expressão teatral, além de uma possível ferramenta de mercado que pode ser utilizada após a pandemia.
"Pode vir a ser uma ferramenta mercadológica, pode ser que através da Internet também se consiga alguma estrutura financeira para os espetáculos. [...] Acredito até que a gente vá ter que manter, não em todos, mas uma maneira híbrida de se apresentar, um novo normal teatral entre Internet e a apresentação presencial", afirma Barata.
Sem ação do Estado, depressão econômica na cultura será 'inimaginável'
Em entrevista à Sputnik Brasil, o professor Leonardo De Marchi, pesquisador em economia criativa e políticas públicas de cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta que o setor cultural representa atualmente cerca de 2,64% do PIB brasileiro, sendo responsável por gerar em torno de cinco milhões de postos de trabalho formais, além dos informais.
"É um setor que é muito importante para um país que se desindustrializou ao longo das últimas décadas. Então, isso faria com que o setor criativo, cultural, e há toda uma discussão sobre se são a mesma coisa, mas o que importa é que esse setor certamente deve ter crescido muito de importância dentro da economia brasileira", afirma o professor à Sputnik Brasil.
"É uma política absolutamente fundamental, que tem que ser de alguma maneira ampliada até o fim da pandemia. [...] É uma política inescapável, ou se faz isso, ou você vai ter uma depressão econômica dentro do setor cultural de escala inimaginável", afirma.
Valor simbólico: elementos de identidade nacional estão em jogo
Diante das especificidades do setor cultural, políticas públicas como a Lei Aldir Blanc se tornam essenciais, de acordo com o pesquisador. Isso porque, explica Leonardo De Marchi, o setor cultural tem relevância simbólica, valores imateriais difíceis de mensurar. Dessa forma, o setor cultural brasileiro, que é "absolutamente impressionante", na visão do professor, não pode depender apenas do mercado.
"Não é um setor econômico utilitário como outros, ou seja, que possa depender apenas de leis de mercado, porque se tem todo um debate sobre a inserção cultural, a excepcionalidade cultural, porque [esse setor] vincula coisas além de um valor utilitário, vincula identidades, discussões políticas e tem uma importância sócio-simbólica, sociocultural maior do que sua importância mercadológica. Então, ela sempre vai necessitar do Estado, porque nem sempre as atividades culturais, artísticas e criativas, em geral, são mantidas pelo mercado", avalia De Marchi.
Nesse sentido o professor, que lamenta que o setor cultural seja pouco levado a sério pelas autoridades, alerta que os resultados da pandemia no setor cultural podem ferir elementos da identidade nacional brasileira.
"Do ponto de vista simbólico, ele é absolutamente central. Nossa identidade nacional é fundamentalmente construída através da cultura de massas", diz.