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Cenário 'caótico': como políticas públicas podem salvar setor cultural da tragédia no Brasil?

© Folhapress / Bruno KellyEm Manaus, o Teatro Amazonas, cartão-postal da cidade, reabre ao público com o espetáculo "Ovam 20 anos", da Orquestra de Violões do Amazonas, com lotação reduzida em 50%, por conta da pandemia, em 2 de setembro de 2020
Em Manaus, o Teatro Amazonas, cartão-postal da cidade, reabre ao público com o espetáculo Ovam 20 anos, da Orquestra de Violões do Amazonas, com lotação reduzida em 50%, por conta da pandemia, em 2 de setembro de 2020 - Sputnik Brasil
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O setor cultural brasileiro foi fortemente impactado durante a pandemia da COVID-19 e vive uma crise além da sanitária. Para discutir a situação e as perspectivas do setor a Sputnik Brasil ouviu artistas, produtores e pesquisadores da área.

As portas fechadas trazidas com o novo coronavírus deixaram produtores e trabalhadores culturais com poucas alternativas e as características específicas do setor agravaram a situação. Fatores como a necessidade de reunir pessoas e a fragilidade dos empregos e estabelecimentos criaram uma grave situação com consequências econômicas, sociais e simbólicas. Com os recursos da Lei Aldir Blanc, porém, o setor, que perdeu 49% dos empregos até junho do ano passado, teve um alívio momentâneo.

Fruto de pressão do setor cultural diante de crise sem precedentes devido à pandemia do novo coronavírus, a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, de autoria da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), foi editada em junho do ano passado e liberou R$ 3 bilhões para a área da cultura. A legislação trouxe ações como o pagamento de auxílio a trabalhadores da cultura - R$ 600,00 por mês - e estabelecimentos culturais - com valores entre R$ 3 mil e R$ 10 mil.

© Folhapress / Alexandre CampbellCantor e compositor Aldir Blanc
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Cantor e compositor Aldir Blanc

No dia 29 de dezembro de 2020, uma medida provisória publicada pelo governo federal estendeu até o final deste ano o prazo para a utilização de recursos já empenhados na lei, ou seja, com a previsão dos gastos descrita até o fim do ano passado. Esse detalhe é criticado pelo setor cultural que busca que o projeto de alívio seja estendido de forma integral, uma vez que a pandemia continua destruindo empregos da cultura e assim mais recursos seriam distribuídos.

Uma das pessoas que recebeu o auxílio da Lei Aldir Blanc, em 2020, foi o ator Leonardo Selva, que afirma que o impacto da pandemia sobre seu trabalho "foi gigante". O artista, morador do Rio de Janeiro, lembra que o período foi marcado por dificuldades profissionais.

"Sem aglomeração de pessoas o teatro não funcionaria e também os projetos em que eu estava trabalhando no audiovisual se interromperam, terminaram com uma equipe reduzida, as gravações pararam e sem perspectiva de volta. Então, foi praticamente um ano de completas incertezas profissionais, até de cogitar fazer outras coisas em outros ramos", conta o ator em entrevista à Sputnik Brasil.

Além de Leonardo, no Rio de Janeiro, outros 1.698 trabalhadores do setor cultural foram aprovados para receber o auxílio, conforme os dados da prefeitura. O ator, apesar de afirmar que o auxílio mensal oferecido pela lei o ajudou, aponta que o valor não foi suficiente para manter as contas em dia.

"É um respiro né, até para manter as contas em dia é muito difícil. Só o auxílio não sustenta em um setor que parou completamente, você não tem mais nenhuma possibilidade e continua tudo parado. Então, acredito que o valor não foi suficiente, longe disso", diz.

Leonardo Selva defende a continuidade do benefício em 2021 para que o setor continue existindo e lamenta que trabalhadores da área, inclusive amigos, estejam abandonando suas profissões devido à falta de perspectiva. 

Com cenário 'caótico', setor reivindica 'prorrogação real' da lei

A situação frágil dos trabalhadores da cultura vem sendo denunciada por membros de organizações do setor cultural que apontam a necessidade de uma prorrogação real da Lei Aldir Blanc, estendendo o prazo de empenho das verbas.

Uma dessas pessoas é a cineasta catarinense Cíntia Domit Bittar, que integra a diretoria da Associação de Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API). Bittar afirma que a pandemia "veio para tornar ainda mais caótico" o cenário do audiovisual, destacando a escassez de medidas do atual governo para o setor.

"Estamos em um momento bastante drástico do audiovisual brasileiro, o que é uma pena, porque o audiovisual brasileiro é a prova de que a política pública para o desenvolvimento de um setor dá resultado", afirma Bittar, em entrevista à Sputnik Brasil.

A integrante da diretoria da API aponta que o formato da extensão da Lei Aldir Blanc, que exige que a utilização dos recursos em 2021 já tenha sido empenhada em 2020, não é o que o setor reivindicava. Para ela, uma  prorrogação verdadeira da lei é fundamental.

"Prorrogar, na verdade, significa lança a 'Lei Aldir Blanc 2021' - uma nova injeção de recursos que podem ser da mesma fonte, inclusive, do Fundo Nacional de Cultura - é muito importante. Ainda mais agora que nós já passamos por essa experiência da primeira Aldir Blanc", aponta Bittar,  ressaltando a experiência acumulada de gestores culturais com a legislação em 2020.

Burocracia escancara falta de investimento e desigualdades no setor

A cineasta Cíntia Domit Bittar acredita que a falta de investimento público no setor cultural se refletiu em problemas de implementação da Lei Aldir Blanc, como desigualdades regionais e problemas de estrutura para lidar com a burocracia e os prazos exigidos. É o que também aponta Eduardo Barata, presidente da Associação dos Produtores de Teatro, sediada no Rio de Janeiro.

"[As diferentes regiões do Brasil] têm uma estrutura muito diferente no setor cultural e também têm singularidades. [...] Falam tanto que a Lei Rouanet concentra só no Sudeste, mas a Lei Aldir Blanc, da forma que eles fizeram, privilegiou quem tem estrutura maior", diz Barata, em entrevista à Sputnik Brasil, destacando que os prazos e as burocracias da legislação foram mais facilmente cumpridos nos principais centros, devido à melhor esturura.

Barata critica ainda a posição do governo brasileiro em relação ao setor cultural, lembrando que a administração do presidente Jair Bolsonaro extinguiu o próprio Ministério da Cultura. O produtor teatral ressalta que a Lei Aldir Blanc é uma iniciativa do Legislativo e lembra que os recursos demoraram para chegar na ponta.

"Como há uma série de burocracias, uma série de falta de entendimento, demorou muito até esse dinheiro chegar realmente nos entes federativos. Isso aconteceu no final de novembro, é muito tempo", aponta Barata, que disse que nesse ínterim os trabalhadores do setor ficaram "completamente abandonados".
© Folhapress / Pedro LadeiraO secretário especial da Cultura, Mário Frias.
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O secretário especial da Cultura, Mário Frias.

Para a cineasta Cíntia Domit Bittar, as desigualdades regionais também revelam o sucateamento do setor cultural no Brasil, o que atrapalhou o processamento dos recursos. Dados publicados pela Secretaria Especial de Cultura do governo federal apontam que 65% dos entes federativos ainda não entraram em processo de liquidação dos recursos empenhados.

"É importante termos sim, uma cultura, um setor cultural, artístico e audiovisual forte. Forte e bem amparado nesse momento de grave crise em que estamos, sim, ainda impedidos de trabalhar ou totalmente, ou com a plena execução de nossas atividades", diz.

Em nota, a Secretaria Especial de Cultura, que integra o Ministério do Turismo, disse à Sputnik Brasil que cerca de R$ 1,2 bilhão proveniente da Lei Aldir Blanc foi empregado pelos gestores em estados e municípios. Ainda segundo a nota, o órgão estima que 700 mil trabalhadores foram beneficiados em cerca de quatro mil municípios brasileiros de todas as unidades federativas, mas aponta que segue "mensurando, junto aos estados e municípios, balanço preliminar dos beneficiados pela medida, bem como os recursos não empenhados".

Pandemia mostra importância da arte e gera inovações

Ao longo do período de isolamento e da angústia gerada pela crise sanitária, a arte tornou-se parte da rotina dos cidadãos, o que teria feito a sociedade entender melhor a importância do setor cultural. 

É o que destaca o presidente da APTR, Eduardo Barata, que acredita que, simbolicamente, "a sociedade entendeu a importância do setor cultural" durante a atual crise, um momento em que "a cultura também se faz presente, hoje, na vida dos cidadãos, quase como uma cesta básica da alma".

© Folhapress / Photo PressCinema em São Paulo
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Cinema em São Paulo

Barata recorda também que durante a pandemia, assim como outros setores culturais, o teatro foi obrigado a inovar usando a Internet. O produtor explica que o setor descobriu uma forma de ampliar o alcance da expressão teatral, além de uma possível ferramenta de mercado que pode ser utilizada após a pandemia.

"Pode vir a ser uma ferramenta mercadológica, pode ser que através da Internet também se consiga alguma estrutura financeira para os espetáculos. [...] Acredito até que a gente vá ter que manter, não em todos, mas uma maneira híbrida de se apresentar, um novo normal teatral entre Internet e a apresentação presencial", afirma Barata.

Sem ação do Estado, depressão econômica na cultura será 'inimaginável'

Em entrevista à Sputnik Brasil, o professor Leonardo De Marchi, pesquisador em economia criativa e políticas públicas de cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta que o setor cultural representa atualmente cerca de 2,64% do PIB brasileiro, sendo responsável por gerar em torno de cinco milhões de postos de trabalho formais, além dos informais.

"É um setor que é muito importante para um país que se desindustrializou ao longo das últimas décadas. Então, isso faria com que o setor criativo, cultural, e há toda uma discussão sobre se são a mesma coisa, mas o que importa é que esse setor certamente deve ter crescido muito de importância dentro da economia brasileira", afirma o professor à Sputnik Brasil.

Dessa forma, ressaltando características do setor cultural, como a fragilidade dos postos de trabalho em meio à pandemia, o pesquisador da UFRJ destaca a importância da Lei Aldir Blanc e alerta para um cenário desastroso na ausência de políticas como essa.

"É uma política absolutamente fundamental, que tem que ser de alguma maneira ampliada até o fim da pandemia. [...] É uma política inescapável, ou se faz isso, ou você vai ter uma depressão econômica dentro do setor cultural de escala inimaginável", afirma.

Valor simbólico: elementos de identidade nacional estão em jogo

Diante das especificidades do setor cultural, políticas públicas como a Lei Aldir Blanc se tornam essenciais, de acordo com o pesquisador. Isso porque, explica Leonardo De Marchi, o setor cultural tem relevância simbólica, valores imateriais difíceis de mensurar. Dessa forma, o setor cultural brasileiro, que é "absolutamente impressionante", na visão do professor, não pode depender apenas do mercado.

"Não é um setor econômico utilitário como outros, ou seja, que possa depender apenas de leis de mercado, porque se tem todo um debate sobre a inserção cultural, a excepcionalidade cultural, porque [esse setor] vincula coisas além de um valor utilitário, vincula identidades, discussões políticas e tem uma importância sócio-simbólica, sociocultural maior do que sua importância mercadológica. Então, ela sempre vai necessitar do Estado, porque nem sempre as atividades culturais, artísticas e criativas, em geral, são mantidas pelo mercado", avalia De Marchi.
© AP Photo / Lucas DumphreysNo Rio de Janeiro, um médico checa possíveis sintomas de COVID-19 em uma mulher na quadra da escola de samba Unidos de Padre Miguel, em 24 de maio de 2020
Cenário 'caótico': como políticas públicas podem salvar setor cultural da tragédia no Brasil? - Sputnik Brasil
No Rio de Janeiro, um médico checa possíveis sintomas de COVID-19 em uma mulher na quadra da escola de samba Unidos de Padre Miguel, em 24 de maio de 2020

Nesse sentido o professor, que lamenta que o setor cultural seja pouco levado a sério pelas autoridades, alerta que os resultados da pandemia no setor cultural podem ferir elementos da identidade nacional brasileira.

"Do ponto de vista simbólico, ele é absolutamente central. Nossa identidade nacional é fundamentalmente construída através da cultura de massas", diz.
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